terça-feira, 19 de julho de 2016

GURPS ÆRTH - Capitulo 10

Estavam cercados.

Os ælfos eram pelo menos duas vintenas - uma patrulha completa. Saíram de trás das árvores, descendo dos galhos mais altos e da cobertura dos arbustos. Todos portavam arcos longos feitos de madeira, tendões e chifres de animais, talhados e esculpidos com a paciência e a maestria que apenas seres de vida longínqua conhecem. Tinham aljavas presas à cintura ou às costas, somando centenas de flechas, todas com ponta de obsidiana, sílex ou osso, apontadas diretamente aos Myrmidons. Suas roupas eram feitas de materiais naturais; couro cru ou fervido, vinhas entrelaçadas, sementes e madeira. Alguns estavam com mantos e capuzes feitos de lã e folhas. Todos tinham a pele branca como a lua cheia, com cabelos da cor da prata polida. Atentos e furtivos, eram semelhantes à grandes felinos, seus olhos amendoados se estreitando, suas longas orelhas pontudas apontando em diferentes direções.




Um deles, com grandes olhos dourados, apontava com sua espada longa feita de marfim. - Larguem suas armas! Vocês invadiram nossa terra.

- Nós fomos trazidos para cá contra nossa vontade. Não queremos problema. - Alexandros Mograine falava baixo, com as mãos afastadas do corpo, demonstrando calma.

- Não importa. Larguem suas armas e rendam-se. Vocês agora são nossos prisioneiros. - O ælfo de olhos dourados os encarou duramente. Outros Myrmidons argumentaram que "eram inocentes", que "nem sabiam onde estavam", mas os ælfos deixavam pouco espaço para explicação. Cercados e acuados, não havia opção a não ser se desarmar...

... menos para Siltari Tauré. Rápida como uma cobra, preparou uma flecha em seu arco, mirando um dos ælfos que os cercavam. Ela flutuava do chão, tendo lançado um feitiço para voar e examinar melhor a floresta onde estavam. Os sentinelas haviam chegado no instante seguinte. Talvez o feitiço servisse para outra coisa agora. - Não iremos com vocês. Não somos prisioneiros. - Ela levitou mais um metro, fixa no ar como um beija-flor. Neste momento, pelo menos dois ælfos fizeram o mesmo, suportados por um tremular celeste. Encararam Siltari por cima da cabeça dos demais, suas flechas retesadas e arcos apontados falavam por si.

- Não tenho alternativa a matá-los por resistência. Não desejo isso, mas darei o que merecem. Larguem suas armas! - seus olhos dourados queimavam de autoridade, os nós dos dedos brancos como a neve tornados rosa ao apertar o cabo de couro da espada de marfim. - Não comece algo que irá lhe trazer arrependimento. - Alguns Myrmidons já estavam se deitando no chão. Damon Cook, obedecendo os sentinelas, cruzou os dedos atrás da cabeça. - Não faça isso, Siltari. Estamos em desvantagem... - o cozinheiro parecia ter, momentaneamente, encontrado a sanidade.

Mas a ælfa parecia estar decidida a não ser posta em ferros. - Não estou começando algo. Estou terminando! - e voou como um pássaro para trás.

No mesmo instante, os dois ælfos a seguiram, também alçando voo. Era uma perseguição. Todos os sentinelas que estavam no chão firmaram-se contra seus alvos, que estavam praticamente rendidos. Sodoma aproveitou o momento da mais leve distração, e tornou-se invisível em uma nuvem de fumaça verde. Rapidamente, enquanto escondido pela magia, conjurou também o poder de voar, e subiu aos ares como uma águia. Esperou que todos também aproveitassem o momento, mas os outros apenas se ajoelharam ou deitaram no chão. Dois ælfos, depois de alguns segundos de surpresa, pareceram ter os olhos envoltos num lampejo de luz laranja, e seguiram Sodoma com a mira dos arcos. Eles claramente o enxergavam, através da magia da floresta.

Siltari é uma exímia arqueira. Mesmo com o vento nos cabelos e em movimento, sua mira manteve-se firme. Sua primeira flecha teve como destino o coração de um dos ælfos que a seguia. A flecha seguiu reta e veloz, mas o sentinela não se defendeu... nem vacilou. Ao invés da flecha atingir seu alvo, algo a dobrou a centímetros do inimigo, uma força invisível a torceu impossivelmente, e o projétil voltou, com a mesma força e rapidez de antes, diretamente ao coração de Siltari! Ao mesmo tempo, ambos sentinelas dispararam suas flechas. Ela rodopiou no ar, assustada, e não foi atingida por pouco. Uma flecha passou a um dedo de sua orelha direita, e duas erraram seu peito por no máximo um palmo.

No solo, os dois arqueiros que seguiam Sodoma com os olhos atiraram suas flechas. Invisível e voando, Sodoma transformou seu braço duro como ferro, um feitiço simples de proteção, e protegeu-se com ele enquanto mergulhava. Uma flecha passou meio metro acima de sua cabeça, e a outra quebrou-se contra seu antebraço, porém, sem causar ferimentos.

Isso era um problema. Siltari, ao ver que suas flechas eram rebatidas magicamente contra si, tentou escapar usando da velocidade. Logo viu a futilidade, uma vez que os ælfos voavam tão rápido quanto ela, já preparando novas flechas. Sem opções, olhou os amigos sendo amarrados e desarmados pelos outros, liderados pelo ælfo de olhos dourados. - Eu me rendo. Parem de atirar! - ela viu-se forçada a dizer, enquanto diminuía a velocidade e levantava o arco acima da cabeça. Os sentinelas a rodearam, flechas apontadas, e a escoltaram de volta à clareira. Eram muito controlados ou seguiam ordens rígidas; seus olhares mostravam o desejo de fazer de Siltari um porco-espinho.

Sodoma, escondido da vista da maioria, voou para além do alcance dos arcos, quando percebeu que era o único resistindo à prisão. O sentinela líder gritou que se rendesse, parecendo enxergar onde ele estava. Sodoma disse que não se renderia, de quase uma centena de metros de distância. "Renda-se, ou seus amigos vão ser mortos", seguiu o ælfo. Alguns sentinelas colocaram facas de osso sobre pescoços dos capturados.

"Não, você não vai matá-los." O necromante acreditava ter percebido que eles queriam capturar os Myrmidons vivos. Como um pássaro, mirou o céu azul e partiu. Ainda assim, notou que olhos dourados o seguiam até perdê-lo de vista. Nenhum de seus companheiros fora morto. Seu blefe dera certo.

O líder deu mais ordens assim que Siltari pousou; todos tiveram os braços e pernas amarrados, e também amarrados uns aos outros, com resistentes cordas de cânhamo que arranhavam a pele. Os ælfos os provocavam enquanto iam fazendo com que andassem. Diziam que era bom que não tinham resistido. Um deles falou rindo que eles quase ficaram com mais furos que uma colmeia.

Andaram no que parecia ser uma trilha de caçadores, pela floresta, por algum tempo. Quase não viam o céu, o sol entrando apenas nos pequenos espaços das folhas do cume das árvores, iluminando-os suavemente. Após poucas léguas percorridas em silêncio, chegaram em uma cidade, mas era diferente do que todos, à exceção de Siltari, haviam visto. Era como se ela tivesse sido cultivada, ao invés de construída, totalmente imersa na floresta, parte integrante da natureza. Torres feitas de árvores ocas, mas ainda vivas e verdejantes. Cabanas e castros construídos dentro de carvalhos, pontes feitas de galhos entrelaçados, a cobertura das folhas servindo como telhados. Nenhuma das lamparinas e lampiões à vista continham fogo: eram preenchidos de uma luminescência fria como a dos vaga-lumes. Pouco a pouco, entraram de fato na cidadela e ficaram à vista da população. Assim como os sentinelas que os capturaram, todos ælfos vestiam-se com os materiais da floresta: usavam capas de penas, chapéus de palha, gibões de folhas trançadas com botões de madeira e adornos de sementes e pedras. Todos brancos como a neve, com o mais leve toque do verde em sua pele e cabelos, como uma tela em branco preenchendo-se lentamente de natureza.


Foram guiados por uma verdadeira cidade feita no meio da mata. As trilhas se alargaram do tamanho de ruas, e quase todas as árvores eram feitas moradia e edifícios. Pareciam ter engolido prédios, lojas, padarias, cervejarias... um ælfo carregando um cesto de vime cheio de frutas parou para que passassem. Os Myrmidons deveriam ter entrado por uma espécie de porta lateral, ou a cidade não tinha um centro. Logo chegaram a uma árvore gigantesca, mais de oitenta metros de altura, e a base de seu tronco deveria ter pelo menos trinta. Possuía longos galhos que se assomavam pela floresta, as infinitas folhas verdes que brotavam se costurando, vivas, em todos os galhos ao redor. Sua sombra era enorme. Os prisioneiros foram levados para uma das aberturas no castelo-árvore, e entraram por ela. Dentro, tudo era feito de madeira e rochas, com esteiras de palha no chão e as luzes de fogo-fátuo de várias cores. Viram escadas enormes, feitas de galhos e raízes, que seguiam para os inúmeros andares superiores. Mas o caminho dos sentinelas era outro, e os Myrmidons viram-se levados para um buraco no chão.



Desceram um túnel que parecia feito por um tatu gigante. Um buraco esférico de terra dura levava para baixo numa espiral íngreme. Deram numa antessala, onde foram despidos de armas e armaduras, e um a um foram deixados apenas com uma muda de roupas. Tiraram inclusive todos os itens que Primak havia lhes fornecido, à exceção do anel de Luparus, que passou despercebido por todos. Os sentinelas colocaram braceletes feitos de carvalho nos Myrmidons, uma forma estranha de grilhões sem correntes. Eram pesados, com arabescos inteligíveis pintados de dourado.

Damon Cook tentou influenciar a mente de um dos aelfos com um encanto, enquanto estava sendo levado. No mesmo momento, os braceletes de carvalho faiscaram com um barulho altíssimo, e os guardas o ameaçaram com facas e lanças instantaneamente, conscientes da tentativa. Assustado, ele se rendeu novamente. Então, um a um foram levados a sala adjacente, alguns corredores à esquerda, e foram colocados em celas.

Todas as celas eram individuais e feitas de terra dura, compactada como uma sepultura em tamanho gigante. Ainda assim, ao menos eram confortáveis. Embora no subterrâneo e sem janelas, algo fazia com que o ar fosse fresco, sem o cheiro de mofo e a umidade da maioria das masmorras. Também havia uma tênue luz mágica surgida de lugar nenhum, um eterno crepúsculo que afastava as trevas. Havia um balde para dejetos, inicialmente limpo, e um amontoado de palha nova e cheirosa fazendo as vezes de cama. Ao invés de barras de ferro, havia uma porta de madeira sólida e grossa, com rebites esculpidos.

Siltari começou a reclamar e esmurrar a porta logo nos primeiros minutos, sem controlar sua claustrofobia. Novamente, em uma demonstração de clemência, a porta de sua cela foi aberta repentinamente, e um dos ælfos apareceu, acompanhado por três guardas. Ele fez alguns gestos rápidos e as paredes da cela de Siltari sumiram, dando lugar a uma linda floresta florida no eterno entardecer. Imediatamente fechando a porta, partiram tão rápido quanto chegaram. Siltari logo descobriu que se tratava apenas de uma ilusão; conseguia ainda tatear as paredes e não conseguia passar desse limite. No entanto, a ilusão era real o suficiente para que a arqueira se aquietasse, e não se sentisse mais enterrada viva - sua prisão era uma pequena clareira, agora. Ela sentia até mesmo uma leve brisa.

Enquanto isso, Sodoma permanecia livre e escondido. Voando por cima do topo das árvores, notou que estava numa floresta imensa. Mesmo bem no alto, ela ia por boa parte de onde sua vista alcançava. Uma cadeia de montanhas ficava no horizonte, a dias de voo. Pousando depois de algum tempo, Sodoma parou para pensar. Com a ajuda de alguns feitiços localizadores, ele imaginou que estava em algum lugar da Floresta de Eldenburn, lar ancestral da Casa de Eldenurin, e também território dos ælfos há milênios. A cadeia montanhosa a alguns dias de viagem então só poderia ser Ærieheim, território anão regido pela Casa Anvilmarr, de um palácio subterrâneo. Ærieheim, pelo que sabia, é quase que coberta em sua totalidade pelas Montanhas Prateadas e suas cadeias de desdobramento – são 150 quilômetros de cânion, terrenos montanhosos, colinas e ravinas - e o pior, caso estivesse certo, isso significava que ele estava a pelo menos uma quinzena de caminhada de Norlland e Skyfall.

Traçou um pequeno plano de ação: procurou um pássaro por um curto tempo, encontrando uma coruja. Disparou um feixe de luz mágica no animal, prontamente o matando. Depois, ressuscitou a coruja com um feitiço da morte, transformando-a um morto-vivo. Escreveu uma mensagem à Lorde Carmell, dizendo onde estava em poucas palavras, e que tinham sido transportados para lá. Ordenou que o pássaro corrompido fosse à oeste, para o maior castelo que encontrasse, e deixasse que retirassem a mensagem amarrada em sua pata - e assim que isso fosse feito, que voltasse a esta floresta. Sem emitir um som, ela partiu. Sem ter como encarar tal viagem sozinho, preferiu se entregar junto aos amigos. Partiu voando na direção onde eles foram levados e logo avistou a cidade. Pousou novamente, e sorriu ao mostrar-se aos guardas. Foi levado pelo mesmo caminho e para as mesmas celas que os companheiros, cercado por mais guardas tensos.

Passadas algumas horas, os Myrmidons foram retirados das celas, ainda desarmados, e foram levados para cima e para fora do calabouço. Atravessaram por algumas portas de carvalho pesado, todas com guardas portando lanças pesadas, arcos curtos e aljavas carregadas de flechas, e entraram num grande salão, aparentemente no centro do castelo-árvore. Era um espaço amplo - talvez coubessem duas centenas de pessoas lá dentro. Uma grande mesa de pedra e madeira, com espaço para pelo menos vinte pessoas repousava no meio dela, onde os Myrmidons foram postos sentados, um a um. Os guardas ficaram às suas costas, vigiando-os. À frente de todos, num local mais alto, em um uma réplica menor da mesma mesa, quatro ælfos, vestidos claramente como nobres, os estudavam. Eram três machos e uma fêmea. Um deles se sentava mais alto dos demais, em um trono de madeira esculpida, lindamente detalhado - tinha o formato de uma árvore, e pequenas luzes frias faziam as vezes de frutos, pequenas estrelas brilhantes. Faces de animais diversos eram esculpidas em seu espaldar.

Um dos ælfos sentados na parte mais baixa perguntou o que faziam ali, acusando-os de intrusos. Ele era branco, como os demais, com cabelos da cor de um osso velho. Seu vestido longo parecia feito de seda clara. Falava muito bem o tradespyk. Os Myrmidons, calados inicialmente, começaram a responder à medida em que os senhores foram aumentando o tom de suas perguntas, mostrando descontentamento. Apenas Sodoma mostrou-se claramente contra dar algum tipo de resposta.

Mesmo assim, os Myrmidons contaram o que houve, sobre o ataque à vila de Tsorvo, e o sobre o espelho que encontraram na torre de Lorde Octavius, depois de enfrentarem alguns "demônios". Um completava a história do outro, automaticamente. Falaram sobre o caminho que se abriu no mundo através do espelho, e o que lá encontraram, na busca por Primak. Os ælfos apenas se olhavam, frequentemente parecendo conversar apenas com os olhos. Poucas interrupções aconteceram. Finalmente os Myrmidons pediram que eles compartilhassem o que sabiam sobre Primak, e reiteraram que não eram invasores. Os ælfos mesmo deram poucas informações - responderam não acreditar na existência de Primak, que ele era um "demônio lendário", e que desconheciam tais espelhos. "Vocês estão mentindo ou loucos", disse o ælfo sentado no trono. Disse que estavam invadindo as terras ancestrais, e que agora estavam no domínio da Floresta de Eldenurim - Sodoma havia adivinhado corretamente sua localização, parecia.

Os ælfos sentados no lugar mais baixo, numa falha de cortesia ou descaso, não deram seus nomes. Eram dois machos muito parecidos, e uma fêmea muito bela, quase diáfana. O ælfo sentado ao trono apresentou-se como Lafariné Irullan, intendente do Lorde Regente de Eldenburn, Tirael Eldenurin. Lorde Tirael não estava presente, e ele falava pelo povo ælfico nesse momento. Os Myrmidons sabem, assim como quase todo o Reino, que ele detém um poder considerável, sendo o tio da Magna Regina Illyria Irullan, e parente do Magnus Rex Harald IV Hyborne. Ser "apenas um intendente" não é relevante neste caso. Com um aceno, ele disse que iria deliberar sobre o caso, e enviou os Myrmidons de volta às celas.



***

Uma portinhola abria-se três vezes ao dia, para que a comida fosse servida e o balde com os dejetos fosse retirado.

Era difícil contar quanto tempo ficaram encarcerados, pois não viam a passagem do dia e da noite, e não tinham nenhum contato com o lado de fora. Era entediante e os minutos se esticavam em horas... apenas as refeições serviram como um relógio improvisado. Eram tigelas feitas de argila ou barro cozido, normalmente com frutas e vegetais, acompanhado de mel, cereais, pão e milho quente. As vezes era algum tipo de sopa, servida com queijo. Água, sumo de frutas ou leite de algum animal desconhecido para beber.

Depois do que pareceram duas semanas, ou perto disso, houve uma mudança na rotina. Um tempo após a entrega da terceira refeição do dia, as portas foram abertas, uma a uma. Guardas foram tirando os presos de dentro das celas, em silêncio, pedindo para que fossem seguidos com cautela. Era um comportamento estranho, os guardas sussurrando e pedindo, ao invés de ordenar. Embora isso deixasse os Myrmidons desconfiados, suas opções eram escassas: seguirem os guardas pacificamente; tentar uma resistência enquanto em menor número e desarmados; ou continuarem presos. A maioria foi simplesmente para saber mais da situação estranha. Damon Cook, aterrorizado pelas vozes de sua mente, preferiu a última opção, quase sendo trancado novamente. Elas diziam que os ælfos não eram de confiança e seriam sua ruína.

Até que Hagen apareceu, guiado pelos guardas como último recurso. Ver um rosto amigo acalmou o cozinheiro, e o servo de Tyr levou-o consigo, prometendo segurança nessa situação insólita. "Tyr escreve certo por linhas tortas, Damon. Não precisamos ter medo", ele disse.

Foram guiados até a antessala que haviam estado dias antes. Guardas ainda os cercavam, mas não ameaçadoramente. Seus pertences foram sendo devolvidos, um a um, enquanto uma ælfa observava. Além de ser a única fêmea entre os guardas, tinha o apenas os olhos púrpuras aparentes - ela usava um manto sobre a cabeça e um tecido cobria a parte de baixo de seu rosto.

"Sigam-me. Vou libertá-los essa noite", ela disse, com uma voz de cristal.  "Não temos autorização para isso, e será escondido... portanto, cuidado". Seu tradespyk tinha um leve sotaque cantado.

Os guardas, após reequipar os Myrmidons, pegaram os mesmos grilhões feitos de carvalho e colocaram nos presos. Mesmo com alguma reclamação, a ælfa disse que "era necessário" e eles acabaram aceitando. Esses conspiradores pegaram algo parecido com tochas - mas ao invés de um pano embebido em óleo, eram pequenas garrafas de âmbar e seiva solidificada com o que pareciam dezenas de vaga-lumes presos dentro. Seguiram subindo pelas escadas de terra. Acabaram saindo do buraco, na periferia do castelo-árvore.

Os minutos foram se arrastando, sem que ninguém trocasse uma palavra além de "venham" e "sigam-nos". Os guardas iam traçando um caminho escondido nas sombras, e os Myrmidons foram seguindo em total silêncio. Saíram do castelo-árvore e seguiram por caminhos entre a floresta. A ælfa ia na vanguarda, ajudando a guiá-los pela floresta, à pé.

Ao entrar na floresta fechada, ela começou a traçar um caminho estranho: dava meia voltas, circundava árvores antes de ir, passava por raízes e voltava. Quando perguntada o que fazia, disse percorrer uma rota magicamente escondida, incapaz de ser guardada na memória por desconhecidos. Pediu para ser seguida de maneira exata.

E eles foram, passando por caminhos tortuosos, dando voltas e indo e voltando de maneira que os faziam ter impressão de ser alvo de uma brincadeira de criança. Depois de um tempo, no entanto, o caminho tornou-se direto, e eles passaram a se afastar do castelo a passos largos. Acabaram por chegar em um pequeno espaço entre as árvores, algo parecido com o inicio de uma caverna minúscula, feita de juncos e musgo.

Todos pararam na entrada, e os guardas, comandados por um aceno da ælfa de olhos púrpura, libertaram os Myrmidons dos grilhões de carvalho. No mesmo instante, Sodoma lançou um feitiço de memória, para não esquecer nunca mais onde estava. A ælfa apenas o observou, no que pareceu um olhar de censura. Mesmo assim, ela tirou o véu, e se mostrou. Era a fêmea que estava presente na sala de conferências, quando lorde Lafariné os prendeu. Ela disse que era contra sua prisão, e que todos na sala sabiam sobre Primak e os espelhos. Mentiram deliberadamente para os Myrmidons, mesmo sabendo de sua inocência. O que lorde Lafariné planejava, ela não sabia... mas era contra seu rumo de ação, por isso engendrou a fuga na calada da noite. Disse para seguirem pelo túnel, e estariam livres.

Seu nome era Landariná.



Agradecendo, ainda que desconfiados, os Myrmidons partiram.

Andaram pelo túnel escuro por horas, no subterrâneo pouco profundo da floresta. Era um túnel úmido, cheio de minhocas e insetos. Finalmente chegaram a uma abertura e viram o céu. O amanhecer não demoraria. Ao sair, a passagem fechou-se sozinha, como uma boca desdentada, e a saída da caverna transformou-se num morro baixo. Após uma breve conferência dos acontecidos e dos rumos à seguir decidiram voltar para Norlland. Seria uma viagem longa. Sodoma fez um feitiço para conjurar mortos vivos presentes a uma boa distância de si, e com isso, sua coruja o encontrou. Estava sem a mensagem amarrada. Talvez tivesse conseguido entregá-la antes de retornar.

Se apressaram madrugada adentro, para que não conseguissem ser alcançados ao terem sua fuga descoberta. Pelo visto funcionou. Iam para noroeste: os dias mesclaram-se na mesma rotina: paravam somente para descansar e comer, os alimentos sendo magicamente conjurados do ar por Damon Cook Bebiam dos rios.

Com quase duas semanas de viagem, chegaram a primeira das vilas do Norte, um pequeno lugarejo chamado Aston. Preferiram circundá-la durante a noite para não chamar atenção. Mais dois dias de viagem, e encontram uma vila ainda maior, agora em território oficialmente "seu" - era uma vila de lenhadores e mineradores, de tamanho quase notável. Escolheram entrar na vila e tentar mandar um pombo correio à Skyfall.

Ao se aproximar, era óbvio que havia algo errado. Os portões da vila estavam fechados durante o dia. Sua paliçada erguida tinha sinais de desgaste e danos. Algumas marcas de sangue fresco próximo ao portão eram visíveis. Sodoma mandou a coruja sobrevoar a vila, e piar caso visse humanos. Ela fez duas voltas em silêncio e piou quando passou por uma grande construção, pousando em seu telhado - talvez o solar da cidade? De resto, parecia vazia.

Embora alguns quisessem também circundar essa vila, outros lembraram que um dos deveres dos Myrmidons de Skyfall era "proteger o Norte", e isso claramente se encaixava, Alexandros concentrou-se no mundo dos espíritos, e viu espectros de guardas mortos violentamente, aparecendo ao seu redor. Um deles, com a cabeça amassada pelo que parecia um golpe de maça, apontava uma uma invasão na vila, chamada de Colkirk. Apenas o Mograine podia ouvir seus terríveis lamentos. Compartilhou isso aos companheiros.

Hagen, sutil, deu com o ombro massivo no portão da vila, e eles abriram. Estavam destrancados. Os Myrmidons entraram em direção ao prédio que a coruja zumbi havia circundado. Ao andarem algumas dezenas de metros pela entrada principal, os portões fecharam atrás deles. Dois uruks de aparência primitiva e grosseira estavam atrás das paliçadas, fechando o caminho. Outros oito urkus saíram das vielas e das construções simples. Todos usavam couro e peles, portavam armas rústicas e pesadas, algumas lâminas de ferro de aparência maligna. Cercavam os Myrmidons esperando o combate, com olhares tensos.



Por um momento se observaram. Ninguém trocou uma palavra. Um dos uruks então correu gritando em direção à Hagen e a loucura começou. Todos moveram-se ao mesmo tempo - Hagen apanhou o uruk com sua grande espada, a lâmina cortando a clava improvisada do mesmo, suas roupas, carne e ossos. Sodoma ficou invisível, como de costume, e um dos inimigos parou confuso, procurando-o. Siltari partiu voando e atirou com seu arco: o primeiro tiro atingiu o coração de um dos inimigos. Ele caiu no chão como se um saco de aveia. Dois uruks avançaram sobre Alexandros, espetando com suas lanças; o Mograine desviando os golpes com suas cimitarras e contra-atacando. Outros dois uruks gritaram algo incompreensível ao atacarem Mitrin. O anão usou seu escudo como uma parede bloqueando os golpes e devolvendo na mesma moeda com seu pesado martelo de guerra.

Alexandros lançou um feitiço de congelamento em um dos inimigos, mas, advindo das terras brancas do Norte, o uruk resistiu. Passando pela geada conjurada, deu uma estocada na direção o rosto do humano. Alexandros deu um passo para trás e desviou, dando abertura ao segundo uruk, que, alguns metros atrás, arremessou sua lança contra seu flanco. A ponta fincou-se fundo no caçador de demônios, e o sangue verteu farto. Hagen correu em sua direção golpeando por onde passava, instintivamente cercando os inimigos acompanhado de Mitrin. A seu lado, o peito de um uruk simplesmente explodiu, seu coração pulando no ar por um momento, e então rolando na terra. O inimigo estava morto antes mesmo de cair no chão. Se Hagen ou Mitrin tivessem a habilidade de ver o invisível, talvez tivessem notado que isso era obra de Sodoma, que manobrou pelas costas do uruk e utilizou um feitiço de evisceração. Siltari atingiu, com suas flechas sempre certeiras, os uruks que se afastavam. Cravou um deles contra o portão de entrada, como um besouro de um colecionador.

Damon Cook, notando a movimentação, lançou alguns feitiços em sequencia - primeiro, estendeu as mãos e conjurou um encantamento de cura sobre Alexandros. Suas feridas fecharam-se instantaneamente, sua consciência voltando num estalo. Quando o combate recomeçou, ele lançou um feitiço aterrorizante sobre os urkus que enfrentavam o caçador de demônios. Desesperados pela imagem mística dos seus piores pesadelos tornados realidade, os inimigos puderam apenas gritar. Com um giro rápido em sua cimitarra, o Mograine abriu a barriga do primeiro uruk, e lançou-se sobre o segundo, segurando sua garganta.

O combate havia acabado. Os Myrmidons se juntavam, todos uruks mortos ou morrendo, à exceção do que Alexandros segurava - ele tencionava interrogá-lo.

No entanto, antes de fazer a primeira pergunta, eles ouviram o som de cavalaria. Dezenas de cascos de cavalos na terra batida. Virando-se lentamente, eles prepararam-se para mais um combate, Talvez fossem mais alguns uruks. Eles poderiam dar conta de mais alguns.

Só que eram muitos. Virando uma das ruas, seguindo pela avenida principal, eles apareceram. Era toda uma tribo nômade, quase cem uruks à cavalo. Outros acompanhando correndo. Todos armados. Suas bandeiras desconhecidas ao vento. Era um exército.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

GURPS ÆRTH - Capitulo 9

Quando recuperaram a visão, todos notaram que estavam num aposento muito menor do que o esperado. Embora o último deles não tivesse dado mais do que dez passos além da porta, o lugar que surgiu não parecia suportar todas aquelas trevas infinitas, senão por magia.

Estavam no que aparentava ser um estúdio de um nobre, fartamente decorado, ainda que com poucos móveis. As paredes eram de rocha sólida, como as do interior de um castelo. Não haviam janelas visíveis, e havia apenas uma porta, à frente e à direita deles. A porta por onde entraram parecia nunca ter existido. Ricos tapetes estavam espalhados no chão, e incensos adocicavam o ar, que estranhamente, não parecia parado. Uma grande lareira queimava à esquerda, com um fogo reconfortante. Uma cama com dossel de veludo estava arrumada, com o que parecia um confortável colchão de penas e cobertas de lã e pele. Ao lado, armários e estantes sugeriam um guarda-roupa extenso e opulento, assim como abundantes materiais de estudo, diários e livros. Tochas queimavam das arandelas de ferro, e velas estavam espalhadas em alguns suportes, o que - juntamente da luz alquímica levitada por Sodoma - fazia com que o quarto estivesse bem iluminado. Nada parecia escondido.

Mas não estavam sozinhos. Encostado em uma mesa, ao lado de uma grande arca de carvalho e ferro, um homem os encarava. Ele era muito bonito, alto como uma lança e cheio de músculos, claramente visíveis sobre suas vestes ricas. Seu gibão de couro macio e flexível tinha tachos de ouro, e sua camisa de seda e cetim parecia nova, com botões de pérola. Seus longos cabelos loiros e lisos cascateavam até os ombros, e seu rosto barbeado tinha um queixo poderoso. Seus olhos eram de um azul elétrico, da cor dos relâmpagos de uma tarde de tempestade - e mostravam seriedade além dos anos que ele aparentava.

- Fiquem calmos, amigos. Não há nada a temer aqui, e eu estou claramente desarmado - ele disse, observando os Myrmidons ainda em formação de combate, espadas em punho e olhares atentos.

 - Então diga quem é e onde estamos, "amigo" - retorquiu Sodoma, enquanto Hagen, Damon Cook, Mitrin Drachenlagen, Alexandros Mograine e Siltari Taure desfaziam a fila reta que estavam, espalhando-se atentamente pelo aposento, ainda desconfiados.

- Estão em minha prisão, embora ela seja mais confortável que se possa imaginar. Eu sou Primak. Sou eu quem buscam.

Prisão? Caso fosse isso verdade, realmente a prisão dos nobres não era nada parecida com a masmorra de Skyfall, onde os traidores, violadores e ladrões eram trancados e esquecidos em meio à trevas, bolor úmido e ratos famintos.

Os Myrmidons perguntaram a ele sobre o que fazia aqui, e se conhecia o labirinto cheio de provações que acabaram de passar. E se havia um propósito em tudo isso. Seu bastão lampejando, Sodoma lançou um feitiço discreto, que lhe permitiria saber se alguém mentisse. Primak respondeu a tudo, calmamente, quase que casualmente:

- Tenho confortos, mas sim, estou bem preso - levantou os braços mostrando dois braceletes, de um aço brilhante e lustroso, fechados firmemente em torno de seus pulsos. - A não ser que vocês achem que isso são as abotoaduras de um nobre - disse, com um rápido sorriso. As correntes que pendiam daí, uma coisa estranha, não estavam ligadas à lugar algum. Simplesmente iam dos braceletes a lugar algum, desvanecendo-se como um espectro antes de alcançarem um metro. Grilhões fantasmas. - Um grupo de elfos, anões e outros me prenderam aqui, para que eu não pudesse ajudar Hyborne.

Contando sua história, sendo interrompido apenas pelos questionamentos dos Myrmidons, que pouco a pouco iam deixando sua atitude beligerante de lado, Primak contou algo parcamente crível. Se dizia um arquimago poderosíssimo, superior ao Magnus Rex. E por Magnus Rex, ele parecia referir-se ao primeiro Harald Hyborne, nos tempos da junção dos reinos, acontecimentos de quinhentos anos atrás. Disse ter sido preso por ajudar seu povo - os humanos - e que as outras raças de todos os reinos o prenderam tanto por não conseguirem o matar, como para evitar que os humanos se espalhassem como uma erva daninha. Em um grande ritual místico espalharam sua essência por planos de existência distintos, cada um ligado a um objeto terreno. Os espelhos. O caminho não era totalmente irreversível, talvez para que o libertassem em algum tempo de necessidade, ele especulou, mas eram povoados de logros, criaturas e desafios místicos; uma armadilha da morte. O que provavelmente era algo sábio a se fazer, uma vez que ele livre, faria com que os humanos unificassem o reino, subjugando todos os inimigos, mortos ou vivos.

"Vocês tem a chance de me libertar, cruzando estes desafios", ele disse. Em nenhuma hora Sodoma sentiu algo que não a verdade, embora mantivesse esse conhecimento para si.

- E porque deveríamos? Algumas escrituras que encontramos o chamam de demônio. Por que correríamos esse risco? - Mitrin tinha seu grande machado apoiado ao chão, pela parte romba que se assemelhava a um martelo, e tinha as pernas levemente afastadas. Hagen pensava em Tyr e orava em silêncio. Me dê a sabedoria, ó Tyr, para discernir meus inimigos e os ímpios. Retire o véu da mentira dos meus olhos, e mostre-me os maus. Sentindo o sopro de seu deus mesmo naquele lugar anormal, seus cabelos da nuca arrepiaram-se. Era um sinal claro que Tyr considerava Primak indigno e mau.

Ao mesmo tempo, Alexandros ia caminhando levemente pela parede, flanqueando Primak o mais que podia, como um gato das montanhas espreitando sua presa. Sua deusa da morte, Nilfengardh, também sussurrava com o Exterminador; há muito ele havia aprendido a diferenciar as enganações dos demônios sobre a Ærth. Seus olhos, duas estrelas azuis e frias, brilharam um pouco mais enquanto ele perscrutava, e houve a repentina certeza... Primak não era um demônio, mas também não era um mortal. Primak era imaterial.

 - Você diz que podemos te soltar, e que você poderia ajudar a unificar os reinos, ainda que em detrimento das outras raças - disse Sodoma, lambendo os lábios em uma negociação - mas não temos motivos para isso. Talvez seja um demônio, talvez não. Mas se está aqui preso, somos a sua única chance. Se você mentir ou nos enganar, nunca voltaremos, e você permanecerá preso. O que pode fazer para... se ajudar? - O necromante lutou para segurar um sorriso.

- Posso dar-lhes algumas coisas, caso prometam voltar. Primak apontou a pesada arca de carvalho à seus pés.

- Embora se diga um arquimago, você perdeu todo o poder, inclusive o de barganha. Sem promessas. Veremos o que você pode fazer, e resolveremos se vamos ou não tentar lhe libertar. O que você tem a perder? Somos sua melhor chance. Afinal, você diz estar preso aqui a quase quinhentos anos... e somos obviamente os primeiros que passaram. Podemos muito bem ser os últimos, e você que fique aqui pela eternidade. - Sodoma tinha um tom quase cruel, sinalizando inflexibilidade. - Você ajuda nossa busca como puder, e nós pesaremos se podemos fazer o mesmo.

Após um breve momento de reflexão, Primak assentiu silenciosamente, aparentemente julgando-se sem opções, e abriu a arca. De dentro dela, tirou alguns itens. A Sodoma, Damon Cook e a Luparus, deu um anel para cada. Deu o que aparentava ser um botão de espada para Hagen e Mitrin. Uma pulseira para Hochsend. Um arco para Siltari. E, finalmente, uma moeda de prata a Alexandros.

Dividido pela dúvida, o Exterminador Mograine decidiu não aceitar. - Não aceito presentes de demônios. Eu os mato e os devolvo para as trevas de onde nunca deveriam ter saído - silvou. Primak, sem se mostrar ofendido, guardou a moeda de prata em um bolso. - Eu não sou um demônio, embora meus inimigos assim me chamem. E apenas deles mereço a alcunha. Você, mais do que ninguém, deveria saber a diferença - disse. Para Alexandros, pouco importava.

- A porta da esquerda leva vocês para fora de meus aposentos, e para fora do espelho. Fora dessa... realidade. Eu não posso cruzá-la, mas vocês são livres para ir. Eu fiz o meu melhor, respondi suas questões com a verdade e dei-lhes itens para ajudar em minha soltura. Estou, novamente, de mãos atadas à meu destino, e só posso esperar que um dia voltem. E me libertem. - Primak era educado como um lorde, e mesmo dizendo-se sem escolhas, respondia dignamente.

- Então é bom torcer para que nos encontremos novamente - despediu-se Mitrin, à caminho da porta.
- Ou não - o tom de Alexandros era levemente ameaçador.

E os Myrmidons passaram pela porta da esquerda, que abria-se também para as trevas inescrutáveis. Como anteriormente, seguiram a luz da poção alquímica. Novamente, quando a porta saiu do alcance do último que passou, ela fechou-se com um estrondo. Julgavam-se preparados para o clarão cegante e o torcer do mundo, mas só Sodoma permaneceu de pé quando materializaram-se ou foram teleportados para uma floresta. O resto estava no chão, a passagem entre realidades por demais desorientante.

Estavam em algum lugar desconhecido. Uma clareira no meio de uma grande floresta fechada, já de manhã. Entraram pelo espelho em Tsorvo quando ainda era noite, e não tinham muita noção de quanto tempo havia se passado, mas claramente havia amanhecido. Lentamente foram se recompondo, examinando os arredores. Estavam em uma floresta imensa onde viam-se carvalhos e urzes negras, bem como árvores sentinelas até onde a vista alcançava. Siltari reconheceu pinheiros marciais, espinheiros, faias, freixos, castanheiras e abetos. A clareira que apareceram era, estranhamente, feita de grama baixa, e formava um círculo quase perfeito. Um lugar para acampamentos, talvez?

Quando começavam a discutir o que fazer, uma flecha se cravou no meio deles. Era feita de madeira escura, com penas cinza de ganso, e todo seu primeiro terço cravou-se na terra - o arqueiro era forte. Um tiro de aviso.

Lentamente, dezenas de elfos armados saíram de trás das árvores, cercando os Myrmidons. Eram sentinelas. Ælfos.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

GURPS ÆRTH - Capitulo 8

Afastando-se o apressadamente da arcada, os Myrmidons seguiram novamente pelo corredor. Repetiram o processo anterior: andaram até terem uma boa visão frontal e da retaguarda e descansaram. Os magos estavam claramente sentindo o esforço de conjurar feitiço atrás de feitiço e agora precisavam de descanso frequente. Os combatentes, por sua vez, estavam razoavelmente bem. O braço de Hochsend ainda permanecia com aparência cadavérica, com uma cor cinza esverdeada feia - mas o aspecto morto parecia estar desaparecendo gradualmente.

Depois de mais um tempo indeterminado, prosseguiram. "Agora enfrentaremos algo provavelmente relacionado à Terra", palpitou Sodoma. O túnel serpenteava pelas profundezas; fazia curvas por todos os lados, e descia e subia, em curvas leves e fechadas, alternadamente.

Passado mais um tempo, chegaram em mais uma arcada. Mais uma sala. Era quadrada e espaçosa, porém sem pilares. Seu chão era todo feito de blocos quadrados, lajotas, cada uma com um símbolo diferente. Centenas delas. No lugar de um teto, havia uma grade de pedra com espaços que davam ao vazio infindável acima, escuro. Novamente, examinaram como podiam de onde estavam, sem entrar na sala. Novamente dotados de alta percepção, Sodoma e Damon Cook viram um padrão. Explicaram que embora toda sorte de símbolos misticos estivesse representado no chão - símbolos de advertência, runas anãs, marcas rupestres ælficas e sinais celestes - havia um padrão. Em espaços não regulares, mas não distantes entre si, o simbolo Imperial da Terra.

Intuíram que bastaria a pessoa pisar nestas lajotas para passar. Era difícil; observaram com cuidado o diminuto tamanho das pedras. Hagen se ofereceu para ir primeiro. No entanto, ia pisando em um simbolo diferente - o sinal coleóptero de "cuidado!" - quando Sodoma o alertou. Disse para pisar somente no simbolo da Terra. Hagen disse que era exatamente o que ele estava fazendo. Sodoma o corrigiu. Mas o cavaleiro permanecia dizendo o que via.

Então perceberam que estavam em problemas.

Comparando o que haviam visto uns com os outros, Sodoma adivinhou o enigma: alguma ilusão os fazia enxergar as lajotas diferentemente. Isso posto, Alexandros desenhou com a ponta de uma espada no chão como era o simbolo Imperial da Terra, e ao invés de mostrar onde pisar, disse que todos pisassem neste símbolo, conforme estivessem o enxergando. Ao que parecia, era uma rota exclusiva para cada um.
Hagen então decidiu prosseguir, mesmo inseguro. Fortaleceu-se na fé em Tyr, declamando a Litania da Coragem enquanto andava. "Não terei medo, pois o medo é um pedaço da morte. Um homem com medo morre todo dia um pouco. Sem medo, eu morro apenas uma vez. Tyr é a vida. Tyr é a coragem. Sem medo, meus olhos são abertos. O medo deve morrer. Com Tyr, renascerei". Passo a passo, lentamente, Hagen passou para o outro lado e atravessou a sala.

Meio incrédulos pelo sucesso aparente, resolveram apenas "ir logo". Sodoma avisou aos que poderiam voar para que não o fizessem, dado o ocorrido no poço. Siltari seguiu com graça, pisando em símbolos que os outros viam como sendo da morte, runas da água e das plantas. Nada aconteceu. Ela passou para junto de Hagen. Os outros seguiram, um a um. Alexandros, no entanto, desequilibrou-se no meio do caminho e pisou em falso. A lajota onde tocou tinha o símbolo Imperial do Fogo e revelou-se ser estampado em areia movediça: uma lama espessa, grossa e pegajosa. Nela, afundou até o tornozelo e ficou preso. Não conseguia tirar o pé do lugar. Após poucos segundos fazendo força, um barulho veio da grade aberta no teto acima: uma chuva de rochas, cada uma do tamanho de um punho, caia exatamente em cima dele!

Tentou proteger-se, mas não teve muito sucesso. Pedras caíram em seu ombro e perna esquerda, ferindo-o levemente. Por sorte, depois disso o caçador de demônios conseguiu desprender a bota, e, com a ajuda de feitiços dos magos, não pisou em falso mais nenhuma vez.

Porém, isso serviu de aviso aos menos ágeis, que preferiram tomar precauções. Sodoma e Damon Cook encantaram-se com feitiços de levitação, para que ficassem praticamente sem peso, e só então foram atravessar a sala. Mesmo Damon pisando em falso, o feitiço lhe deu leveza o suficiente para que não ficasse preso, e não fosse atingido pelas rochas que caíram em seguida. Sodoma quase caiu uma das vezes, também sendo salvo pela sua magia. Luparus, possuidor de grande agilidade, fingiu não entender o porquê de tamanho cuidado, passando facilmente para o outro lado, sua caminhada pelos espaços pequenos uma tarefa corriqueira para quem costumava se equilibrar em calhas sujas e telhados escorregadios.

Milagrosamente, haviam passado mais um desafio sem incidentes.

Da arcada da saída, o túnel seguia reto. Andaram por ele por mais um bom tempo, e chegaram uma divisão - o caminho separava-se em três. Uma passagem à frente, uma à esquerda e uma à direita. Seguiram pela direita, escolhendo ao acaso. O túnel descia levemente, fazia uma curva para a esquerda, esquerda de novo e terminava em uma porta fechada. Isso fez com que todos ficassem cautelosos. Hagen abriu a pesada porta de madeira, e todos deram de cara com uma escuridão total. Parecia sólida, não sabiam nada o que havia na frente, a luz não passava de alguns centímetros além da entrada.

Certamente não era uma escuridão natural, pois todas as tentativas de se enxergar algo dela foram frustadas. Ela pareceu engolir as luzes quando Hagen colocou sua tocha para dentro da passagem; as trevas tragaram o fogo e sua luz sumiu. E no entanto, a tocha continuava queimando. Sem ver para onde iriam, temeram ser presas fáceis e preferiram testar o outro caminho, ver se os outros lados eram mais seguros. Voltaram por onde vieram e pegaram o caminho da esquerda. Mas parecia inevitável: ao seguir o túnel, que também descia levemente, dobrava a direita duas vezes e também terminava numa porta fechada. E ao forçar essa porta, encontraram a mesma escuridão. Voltaram e checaram então o caminho do meio, com o mesmo resultado. Esse apenas seguia reto e para baixo por uma distância curta, e terminava em uma terceira porta que dava acesso às trevas. Parece que teriam que enfrentá-las ou voltar pelos desafios vencidos.

Sodoma teve uma ideia: pegou uma das poções alquímicas que haviam encontrado na torre do Lorde Octavius, retirou a pílula presa à tampa, jogou no líquido, ativando-a. Instantaneamente, ela eferveceu levemente e acendeu, gerando um brilho intenso, branco e frio como uma lua em miniatura. Com um feitiço de movimento, ele levitou o frasco e o fez entrar na escuridão, como se movido por uma mão invisível. Eles então notaram que o frasco iluminava fracamente o soalho, não sendo engolfado pelas trevas. Parecia um salão sem paredes e teto, apenas com chão - talvez um salão imenso, e a luz que combatia o negrume não chegava aos limites do ambiente.

Conseguindo ao menos ver onde pisavam, decidiram seguir, com o maior cuidado e atenção que podiam dispor. Os Myrmidons foram entrando entrando naquela tenebrosidade, seguindo a luz flutuante e as partes inferiores das pernas uns dos outros. Andavam lentamente, para não perderem essas únicas referências de vista. Sabiam que estavam andando reto enquanto podiam enxergar a porta às suas costas; era estranho... viam a porta de onde vieram e a luz da poção alquímica, e mais nada. Certamente essa não era uma escuridão normal.

E foi assim que foram seguindo, até que o último deles ficasse fora do alcance da porta. Quando isso aconteceu, ela se fechou, com um estrondo. A realidade pareceu torcer-se e dobrar em si, e eles foram cegados por um lampejo brilhantíssimo, um fulgor cintilante como o do sol do verão.

E depois de desorientados por alguns segundos, podiam ver.

sábado, 18 de julho de 2015

GURPS ÆRTH - Capitulo 7

Hochsend von Schultz gritou de dor por apenas um segundo. Sodoma, observando atentamente ao combate, apontou a cabeça encolhida de seu cajado para o guerreiro, e emendou o osso quebrado por mágica. O braço ferido assumiu uma coloração cadavérica, mas a dor desapareceu instantaneamente. Apesar disso, foi um giro da espada de Hagen, cortando diretamente o flanco da criatura, que impediu que o inimigo esmagasse crânio Hochsend enquanto esse gritava.

Num misto de coincidências e habilidade, um a um os inimigos foram vencidos. Sodoma lançou um feitiço de controle em uma das criaturas e a fez lutar contra os seus. Damon Cook tentou quebrar as pilastras de rocha e as de fogo, imaginando ter alguma conexão com as criaturas. Não teve sucesso nas tarefas, e nem tempo. Siltari Tauri, do alto, atualizava os companheiros sobre o que via, e como estavam dispostos os inimigos que vinham em ondas. Hagen triturava os oponentes de um lado, bradando o nome de Tyr, enquanto Mitrin Drachenlager acompanhava do outro lado, ambos criando uma música funesta do som de aço em pedra. Alexandros Mograine fez novamente de suas cimitarras gélidas e destruiu um dos inimigos com golpes rápidos e precisos - o frio de suas armas e a água de Yasmin eram MUITO eficientes contra esses inimigos. Depois de um breve combate, sobrou apenas um demônio: aquele sobre o controle mental de Sodoma.

O necromante aproximou-se da criatura e travou novamente um diálogo, naquela mesma língua estranha, ininteligível, cheia de sons fricativos. Quando se deu por satisfeito, repetiu o processo da torre - fez sinal para que Alexandros matasse a criatura que fora ordenada para permanecer parada e indefesa. O golpe com as lâminas geladas quase cortou o Dêmonio Antigo ao meio. Instantaneamente, os pilares de fogo se apagaram.

O necromante contou que a criatura dizia servir a um mestre, Primak, o demônio descrito no livro de Rosembaum, e ao ser perguntada sobre o que seu mestre queria, o ser respondera "tudo". Não desejando ficar na sala nem mais um momento do que o necessário, saíram pela arcada oposta seguindo pelo túnel sem fim. Após andarem por alguns minutos sem eventos, decidiram descansar. Pararam num trecho reto onde conseguiam ver tanto a frente quanto a retaguarda por dezenas de metros, a língua de fogo à direita iluminando o caminho. Ironicamente, fizeram uma pequena fogueira com tochas para cozinhar. Comeram e recuperaram-se. Alguns cochilaram e Alexandros até conseguiu silêncio o suficiente para meditar por alguns minutos.

Todos com mais calma, conversaram sobre o grupo - mais precisamente, sobre as rusgas do grupo. Hagen pediu desculpas à Damon Cook pelo ataque impulsivo, mas pediu que cessassem as ofensas à Tyr. Damon, ora mudo, ora debochado, disse de maneira estranha que o grupo todo era caótico. "Só Herbert me entende. Não é mesmo, Herbert? É sim. Eu disse pra eles". Combinaram de se escutar mais, porquê as únicas certezas que tinham era que teriam mais problemas até resolverem toda situação, e só podiam contar com eles mesmos. Ânimos, mentes, ferimentos e barrigas acalmadas, continuaram pelo túnel subterrâneo.

Perdendo a conta de quantas horas já se passaram, eles prosseguiam. Andaram até que o túnel começou a descer em uma espiral à esquerda. Algumas voltas e este terminou em uma nova arcada. Novamente, preparados para o combate, espiaram o máximo que conseguiram antes mesmo de pisar na sala. Esse local, no entanto, estava vazio. 

Se assemelhava com o fundo de um poço muito alto, com mais de vinte metros de altura. Um cilindro de rocha, desta vez não com aparência natural, mas feito de pedras ocres cortadas e encaixadas. O rastilho de fogo entrava na sala pela parede da direita, mas ia subindo em espiral pelo tubo. Sem janelas, havia apenas uma outra arcada fazendo às vezes de porta - lá no topo, a duas dezenas de metros do chão. O rastilho seguia por esse caminho. Nas paredes, abundavam reentrâncias e apoios para escalada. Nas concavidades da parede, símbolos espalhados. Sodoma e Damon identificaram os símbolos como um dos que representavam o elemento ar. Siltari disse que eles aparentavam o símbolo ælfico da morte.
Acharam que escalar não seria uma boa ideia. Sodoma disse que, entre as coisas que conversara com o demônio, podiam esperar desafios ligados aos elementos, o que estava bem claro agora. Água, Fogo, e agora Ar. Felizmente, os Myrmidons estão entre os solucionadores de problemas mais capazes de Ærwa: resolveram simplesmente VOAR até o topo. Damon Cook encantou Mitrin para que esse fosse capaz de volitar. Por ser forte, ele levaria Hagen e Yasmin nos braços, enquanto Siltari, Damon e Sodoma seguiriam voando.

Um a um, revoaram como pássaros... mas no exato momento em que Sodoma, que ia por último, deixou de tocar o solo, os símbolos gravados nas paredes começaram a sangrar um vendaval intenso! Claramente uma força antinatural, em um momento formou um ciclone dentro do cilindro de pedra. Literalmente, como folhas ao vento, os Myrmidons foram jogados violentamente contra as paredes e uns aos outros!

Sodoma, com um foco sobre-humano, conseguiu conjurar um feitiço de teletransporte ao meio da confusão. Em um salto no espaço, estava na arcada, no topo do poço. Vento o empurrava para baixo. No segundo salto ele aparecia num trecho do túnel, em relativa segurança, após a linha imaginária de onde o vendaval começava. O vácuo deixado pelo seu corpo era preenchido por um estouro de fumaça cinzenta com cheiro de terra do túmulo, instantaneamente dissipado pelo tornado. Infelizmente era o único que havia passado e restava assistir seus companheiros se virarem como podiam.

Mitrin, movido mais pela força de vontade do que pela força física, conseguiu vencer o tornado e chegar a arcada do topo. Deixou Hagen e Yasmin agarrados à parede lutando contra o vento e voltou para ajudar os outros. Damon Cook girava descontroladamente, sem conseguir voar numa só direção. "Heeeeeeeeeeeeeeeeerrrbbbeeeeeeeeeeeert!", gritava. Siltari, batendo nas paredes, também girando, tentou agarrar o cozinheiro para tentar alguma estabilidade para ambos. Acabou segurando à jaqueta de Damon - e num só movimento conseguiu despir o homem e ficar sem ver; o vento grudou a peça de roupa em seu rosto como uma segunda pele. Ambos giravam sem controle, chocando-se contra as paredes, solo e um com o outro.

Foram longos momentos até conseguirem recuperar o controle. Damon Cook conseguiu pousar no centro do poço, esforçando-se para gritar algo para os amigos. Com o vento fortíssimo, ouviram algo como "tentar" e "escalar". Hagen usava seus poderosos músculos para não só se firmar na parede acima, como segurava Yasmin, que perdeu a pegada algumas vezes e certamente cairia. O vento surgia do nada no túnel acima, soprando impossivelmente na direção do ciclone. Sodoma tentava alcançar uma das mãos de Hagen com seu cajado, mas era impraticável. Mitrin, descobrindo-se um melhor aeronauta do que jamais imaginou, conseguiu, com dificuldade, chegar a ælfa e ajuda-la a subir. Também agarrada a parede de pedra, conseguiu, finalmente, alguma estabilidade. Hagen mandou as ælfas darem as mãos, e começou a puxar ambas para trás. Enquanto isso, Mitrin voltou para buscar o cozinheiro, e ambos subiram voando abraçados em meio ao redemoinho. Um a um, e com a ajuda de todos, foram passando da linha imaginária no túnel acima, onde o vento antinatural começava a soprar. Assim que o último passou, ele cessou, e o turbilhão morreu.

Embora estivessem com escoriações de choques com as pedras, num estado lastimável, e a jaqueta de Damon estivesse lá embaixo em algum lugar, eles estavam de volta no túnel. De alguma forma, o rastilho de fogo seguia a parede da direita, nunca tendo se apagado nesse tempo todo.

Eles haviam passado mais um desafio.

GURPS ÆRTH - Capitulo 6

Por um breve momento, o espaço se torce ao redor de Damon Cook. Como se regurgitado por uma fera gigante, apareceu aos portões de Skyfall com um alto estrondo púrpura. Era estranho, pois ele havia tentado se transportar magicamente para a sala do trono. Convencido que o castelo tinha defesas mágicas contra seu feitiço, andou até o portão principal e exigiu falar com Lorde Carmell. Rapidamente, foi levado até a sala de conferências, onde lhe foi servido vinho e comida, enquanto acordavam o senhor no meio da noite.

Após uma breve espera, Lorde Herry Carmell entrou na sala, alerta, mas com a aparência de quem acabara de acordar. Era acompanhado de três guardas e Sir Derron Coriander, seu conselheiro, senescal e "sábio pessoal". Após mandar os guardas protegerem as entradas e os deixarem à sós os lordes sentaram-se ao lado do cozinheiro e perguntaram o que havia acontecido. Damon Cook não estava mudo nesta noite, então falou abertamente sobre tudo o que tinha presenciado em Tsorvo. Não deixou nada de fora. Os nobres ficaram a maior parte do tempo em silêncio e ouvindo - interrompendo raramente, e apenas para esclarecer algum ponto da narrativa.

Quando o cozinheiro terminou seu relato, Lorde Carmell já estava completamente desperto. Ordenou que ele retornasse à Tsorvo como veio e que os Myrmidons deveriam seguir pelo túnel aberto no espelho e descobrir o que havia do outro lado. Deveriam matar todos os demônios que encontrassem. Levantando, mandou chamar o capitão da guarda, Sargos Grimmwulf, e pediu que ele preparasse todos os homens para proteger Skyfall, enquanto enviaria uma brigada à Tsorvo para prestar socorro aos sobreviventes. E tentaria entrar em contato com esse Lorde Qyle de Brynndol, desconhecido por eles.

Sir Derron, quando inquirido por Cook, conseguiu explicar os objetos trazidos. Após examinar os itens minuciosamente e com um feitiço de escrutínio que fez sua fronte verter um fluído brilhante da cor do céu de verão, disse que eram feitos com o auxílio de poções alquímicas. Contou que o frasco de vidro era uma poção luminescente: bastava abrir a tampa e jogar a pílula no seu interior para que fosse criada uma reação que geraria uma luz fria. O ovo de jaspe era um objeto de cura. Se pressionado, seria esmagado com facilidade. De dentro do ovo emanaria um miasma que curaria ferimentos e mazelas de quem o esmagou em sua palma. O cozinheiro agradeceu, silenciosamente invejando o conhecimento compartilhado, pegou os itens e partiu.

Tentou dobrar o espaço diretamente da sala onde estava, mas suas suspeitas viraram certeza: Sir Derron disse que o castelo de Skyfall era protegido contra esse tipo de invasão mágica. Deveria tentar do lado de fora. Sentindo-se ignorante pela primeira vez em anos, Damon Cook decidiu que não gostava do velho feiticeiro.

Saiu em direção ao portão principal e viu metade do castelo acordada. Soldados preparavam-se para partir. Ainda que tudo desse errado, a centena de homens armados que chegariam a Tsorvo em meio dia poderia resgatar seus corpos. Concentrando-se por um momento, novamente sumiu em meio a fumaça púrpura. Voltou o topo da torre de Lorde Octavius de Tsorvo.

No pouco mais de uma hora que se passou, Hagen, impaciente, não queria esperar. Descortinou o espelho e entrou no corredor. Mitrin resolveu o acompanhar, por segurança. Era um túnel de rocha marrom clara, quase perfeitamente esférico, excluindo-se o chão, reto. O anão notou que o caminho era de aparência natural e não esculpido por homens. Andaram alguns passos, e iluminados pelo fraco luar, viram uma placa na parede de pedra. Era feita de bronze, alguns tons mais escuros que a parede, e tinha uma inscrição em velho Imperial, língua desconhecida para ambos. Abaixo da placa, uma estátua de uma harpia, uma criatura meio mulher, meio águia. Era encrustada na rocha sólida pelas patas e garras e protegia a sua frente com as grandes asas, parcialmente escondida. Ao lado da estátua, uma simples alavanca apontava o teto.

Imagem conceitual, não uma reprodução exata da estátua. 

Hagen queria prosseguir, mesmo sem saber o que aquilo significava. Chamou por Sodoma e pediu uma tradução. Acreditando que isso iria apressar ainda mais o seguidor de Tyr, o necromante simplesmente permaneceu onde estava. Forçosamente, os homens de armas aguardaram.

E então a nuvem de fumaça trouxe o cozinheiro de volta. Ele informou o que se passara em Skyfall e para que serviam os itens. E repassou as ordens de seu lorde; tinham de passar pelo portal. Matar todos os demônios. Hagen agradeceu, sedento por ação.

Antes de ir, porém, tomaram algumas precauções. Alexandros Mograine desenhou com suas lâminas alguns riscos no chão de pedra, um grande círculo delimitando o espelho. Conforme ia marcando as pedras, rezava e tocava seu corpo e a marca com as mãos. O brilho azul em seus olhos oscilava, parecendo acompanhar sua reza, ora como lanternas, ora como estrelas. Em pouco tempo, havia desenhado um círculo cheio de símbolos. Disse ter projetado um feitiço de proteção e que nenhuma criatura mágica poderia cruzar os limites da roda. Assegurou que nenhum demônio sairia, não importando o que acontecesse. Hochsend aproveitou a oportunidade e postou os Guardiões da torre, mesmo trôpegos, ao redor desse anel.

Julgavam ser a melhor proteção que podiam fazer. E um a um, entraram no túnel. Quando Hochsend pisou no chão de terra, a caverna soltou um longo GRITO, vindo de todos os lugares, como centenas de mulheres e crianças em sofrimento. Era ALTÍSSIMO, e os Myrmidons tomaram um grande susto e se abalaram, cobrindo os ouvidos. De alguma forma, esse lugar reagiu na entrada do cavaleiro. Ainda assim, só havia um caminho. Quando os gritos cessaram, tão rápido quanto vieram, prosseguiram sem trocar palavras.

Ao chegar na placa com a frase em Imperial, Cook e Sodoma a leram. Estava escrito "eínai tyflos viderent et viderentur in tenebris". Disseram significar "andem sem ver ou vejam e sejam vistos". Hagen puxou a alavanca enquanto os outros pareciam pensativos, decidindo o que fazer. Com vários estalos, algum peso foi liberado por trás da pedra. Com movimentos entrecortados, a estatua da harpia, um autômato movido por cabos, abriu suas asas e as mãos estendidas portando algo que parecia um quartzo do tamanho de um olho, como uma oferenda. Ao término do que pareceu ser um giro de uma roda invisível, a tensão dos cabos se foi, e a estátua juntou as mãos e asas violentamente, voltando à posição inicial. Ao fazer isso, as pedras em suas mãos se chocaram e uma chuva de faíscas foi lançada nas proximidades, como de uma pederneira. Um fogo se acendeu numa reentrância até então invisível na parede, abaixo da alavanca, e um risco de chamas foi seguindo pela parede direita do túnel, até onde a vista alcançava. Era como se um rastilho feito com óleo de lamparina fosse aceso, uma longa língua de fogo lambendo a rocha... iluminando o caminho.

Entre indiferentes com a luz e contrariados com Hagen pela impulsividade, seguiram em frente. Veriam o caminho, afinal. Sodoma, ainda em silêncio, apontou o que achava da ação fazendo verter uma forte luz leitosa dos olhos da cabeça encolhida que ficava empoleirada em seu cajado mágico.

Seguindo pelo túnel, era fácil notar que algo não estava certo. Não era um túnel feito por seres pensantes, assegurou o anão, mas sim uma ocorrência que parecia natural. E no entanto, era uma caverna diferentes de todas, as rochas desérticas, sem umidade, sem fungos, quase nenhuma vegetação. Sem insetos. Sem o ar parado. Largo, até três Myrmidons conseguiam andar lado a lado, e com espaço para combater - pois era o que todos esperavam. E parecia infinito.




Andaram pelo que pareceu ser uma boa hora. Sem alterações, tudo era igual. O rastilho de fogo na parede iluminava o caminho como uma dezena de tochas. Num dado momento, o túnel começou uma descida. No final da descida, um passagem em arco. Com cautela, examinaram o que vinha além: uma caverna, aparentemente natural como o túnel, mas também perfeitamente esférica, sem estalactites ou estalagmites e que terminava em um pequeno lago subterrâneo.

Yasmin, sendo uma ælfa da água, prontamente se voluntariou para examinar o lago. Sendo anfíbia, praticamente agradeceu a chance de um belo banho gelado. Mergulhou e saiu da vista dos Myrmidons, que permaneciam na beirada no lago, olhando o rastilho de fogo prosseguir, debaixo d´água, ao desconhecido.

Um breve momento de tensão, e Yasmin retornou. Parecia mais bela saindo d´água. Disse que era um lago "em formato de gota", profundo largo na parte de baixo, e muito mais estreito em cima. O rastilho de fogo continuava a queimar, de alguma forma, como uma poção borbulhante. Mesmo com essa luz, ela não conseguia enxergar o fundo do lago, e resolveu não se afastar tanto. Não havia um bolsão de ar, mas após pouco mais de uma dezena de metros, uma saída. O túnel continuava. O lago seria então mais um obstáculo simples.

Para uma ælfa da água, claro. Que respirava ar. Ao relatar o que encontrou, metade do grupo se entreolhou. Muitos não sabiam nadar. Hagen, Hochsend, Mitrin...

Depois de um tanto de deliberação, decidiram que as ælfas, Yasmin e Siltari, iriam nadar para o outro lado com duas cordas unidas em uma. Tentariam amarrar em algum lugar e dariam um aviso. Tudo certo, os outros passariam segurando a corda, submersos completamente, tentando apenas segurar o fôlego por pouco mais de uma dezena de metros. Parecia simples.

Parecia.

Alheio ao planejamento, Damon Cook disse que não precisavam se preocupar com ele. Um breve  momento de concentração, e ele pareceu vibrar, de alguma forma. Deu dois passos e *atravessou* a parede do lado, andando pela rocha como se fosse ar. Yasmin e Siltari cruzaram o lago novamente, procurando um local para ancorar a corda. Viram Cook sair da parede do lado delas, seco. Ficou ali olhando e esperando. Pouco a frente, o túnel parecia chegar ao final.

Não havia onde amarrar a corda. Não havia pedra ou ponto de apoio ou reentrâncias - outra estranheza do túnel, liso. A solução foi carregar Hagen para o outro lado, o segundo mais forte dos Myrmidons. Ambas não tiveram trabalho para submergir o cavaleiro, já que ele não tirou a armadura, armas e equipamento, mas fazê-lo não se debater e engasgar foi impossível. Hagen passou, embora quase se afogasse. De lá, depois de assoar a água, segurou a ponta da corda. Do outro lado, Mitrin, o gigantesco anão, esse sim o mais forte, segurava a corda como a um barbante.

Um a um, começaram a passar. Com maior ou menor facilidade, a maioria se afogou e respirou água, embora a corda e as ælfas impedissem o pior. Sodoma, um dos que menos precisou de ajuda, notou um movimento indefinido no fundo do lago, olhando com a ajuda da luz de seu cajado. Saindo, molhado, pediu para que se apressassem, pois previa problemas.

Provou estar certo. Uma estranha criatura apareceu, massiva. Cobria quase todo o espaço de cima do formato de gota - certamente antinatural, aparentava-se com duas águas-vivas gigantes, coladas pelas traseiras. Era levemente fluorescente, e tinha dezenas de tentáculos que saiam pelas laterais e alcançavam ambos os lados dos túneis. E atacou os Myrmidons por ambas as frentes!

Novamente, imagem conceitual.
A situação era caótica. Hagen segurava a corda de um lado, impedido de combater. Hochsend o ajudou, protegendo-o com o escudo, mas os tentáculos eram muitos, e o cavaleiro não podia recuar. Hagen ora tentava largar a corda e golpear, ora a mantinha segura - mas escorregava e entrava no lago até as coxas, indo e voltando.

Sodoma disparou um feixe de luz solar da ponta de seu cajado e queimou a criatura mesmo dentro do lago. Damon Cook desapareceu. Ninguém sabia onde ele estava. Do outro lado, Mitrin segurava a ponta da corda, enquanto tentava afastar os tentáculos com seu grande machado. Luparus recuou esgrimindo: não sabendo como ajudar ou atravessar com Garã, seu macaco, escolheu sabiamente não atrapalhar. Alexandros cortava os tentáculos que saiam da água, mas eram muitos, e isso não reduziu o ímpeto do monstro. Yasmin ficou dentro do lago, tentando pelo menos afugentar a imensa criatura furando-a com seu tridente pelos flancos.

Em parte combate, em parte cabo de guerra, a tática da criatura era clara: agarrar os Myrmidons com seus longos tentáculos e arrastá-los para a água. Uma vez submersos, a morte era certa, entre serem afogados e comidos vivos. Sons diversos ecoavam pelos túneis - água chapinhando alto, gemidos de força ao puxar a corda, brados de batalha, o som de metal contra a carne gelatinosa, e gritos de desespero ao serem agarrados e puxados. Ninguém ainda tinha sido totalmente puxado, graças à ajuda uns dos outros. Em um determinado momento, Hagen foi agarrado pela cintura e esmagado. Teria sido puxado, não fosse um feitiço vindo do nada, um raio verde atordoante, que, com um barulho metálico, fez a criatura o largar.

Sodoma concentrou-se com mais vontade, e sua determinação fez verter de seu cajado um feixe de luz solar mais poderoso, esse sim queimando gravemente a criatura. Ao mesmo tempo, Alexandros conjurou um feitiço de desidratação, um dos focos de sua magia do frio, enfraquecendo ainda mais o monstro. Foi então que, cansado do impasse e para aproveitar essa chance, Mitrin adotou uma tática suicida: enrolou a corda ao braço com firmeza, e entrou gritando na água, desferindo os golpes mais fortes que conseguia direto no corpo da criatura. Seu heroísmo, até então conhecido apenas por fama, pôde ser testemunhado pelo grande estrago que fez - grandes pedaços de carne gelatinosa separaram-se em meio a um líquido viscoso e a água gélida, e a criatura soltou a todos. Com golpes capazes de colocar abaixo o mais forte dos portões de castelo, Mitrin Drachenlager, o Dragão sob a Montanha, golpeou freneticamente o ser estranho, até que esse estremecesse e afundasse lentamente.

Ao assistir a criatura fugindo ferida ou inconsciente, aproveitaram para passar. Ambas ælfas ajudaram o resto dos Myrmidons a nadar. Nesse ínterim, uma briga. Damon apareceu, revelando ser o fim do túnel uma de suas ilusões para que possíveis inimigos não viessem pela retaguarda, uma parede falsa. Irônico, criticou a postura vacilante de Hagen: "ao que parece, Tyr não tem poderes debaixo da água".

Conhecido por seu temperamento esquentado, o servo do Deus da Justiça começou a discutir, mesmo enquanto os outros ainda passavam com dificuldade para o outro lado. Largou sua ponta da corda, e forçosamente Hochsend a agarrou. Mais ofensas voaram, e foram às vias de fato - ao ouvir um novo deboche à seu deus, Hagen desferiu dois socos no cozinheiro. Este, por sua vez, pareceu tremular como uma miragem, e teleportou-se na distância de um passo, evadindo-se de um dos socos. O outro golpe, ele desviou com seu bastão. Ao ver a fúria nos olhos do cavaleiro, recuou, e mandando um beijo jocoso, fundiu-se novamente com a parede, fora do alcance. Enquanto isso Hochsend tentava acalmar os ânimos e pedir ajuda, ainda segurando sua ponta da corda e auxiliando os outros. Sem sucesso.

Em pouco tempo, todos estão do outro lado. Cansados, molhados e com frio. Garã deu menos trabalho que o imaginado, mas acabou afogando-se um pouco, como todos. Era um clima tenso, onde ouviam-se apenas tosses e reclamações. Damon revelou, numa nova provocação, que o feitiço desconhecido que havia salvado a vida de Hagen tinha sido sua obra.

Afastando-se da borda do lago, viram que o túnel continuava, idêntico, para cima. O rastilho de fogo, como feito por alquimia ou magia, saía de dentro da água e continua iluminando, sempre à parede da direita. Discutiram todos sobre seriedade e responsabilidade, e que não poderia haver brigas entre eles enquanto estivessem nessa situação, um tão dependente da ajuda do próximo. Relutantemente, uma trégua foi feita.

Novamente andaram pelo que pareceu serem horas. Subiram um tanto e depois andaram, retos como uma flecha. Depois curvas leves para a esquerda e direita, e o túnel desembocou em uma nova arcada. Acabava numa sala, essa sim feita por construtores. Tinha mais de dez metros de largura por vinte de comprimento, divididos por três fileiras de três colunas espaçadas igualmente.


Cansados de serem pegos de surpresa, examinaram o máximo que podiam sem atravessar a arcada. Damon Cook e Sodoma notaram, ao mesmo tempo, que entre as colunas haviam várias cópias de um dos símbolos místicos do elemento fogo. Após conjurar um feitiço tremeluzente, Sodoma avisou ao grupo que haviam inimigos esperando e que não pisassem nos símbolos.


Hochsend decidiu fazer uma formação de batalha, com Hagen e Mitrin ao seu lado na vanguarda, Yasmin, Alexandros e Luparus no meio e Sodoma e Cook na retaguarda. Siltari voava acima do grupo, no espaço entre suas cabeças e o teto, através de um feitiço de voo que fazia o ar a sua volta cintilar e a fazia exalar um leve odor de alfazemas.

Adentraram a sala lentamente. Ninguém à vista, foram avançando até a primeira fileira de colunas. Hochsend sentia o mal da sala, como se combatesse sua fé em Tyr. O mesmo deus pulsava dentro de Hagen, avisando-o de inimigos. Hochsend acreditava que as colunas era de onde o mal emanava, então foi até uma delas, em guarda, e tentou desajeitadamente "exorcizar" a arquitetura. Sem um ritual de preparação ou orações, apenas bateu em uma das colunas com seu escudo...

... e imediatamente após isso, Demônios Antigos, do mesmo tipo que eles encontraram na Torre de Tsorvo, saíram de dentro da arquitetura, findando sua fusão com a pedra! Eram nove deles, um para cada coluna. Todos feitos da união da rocha e do fogo, portando correntes e armas incandescentes, no formato de espadas curvas, ganchos ou porretes.

Novamente, houve combate. Novamente, o sons de metal faiscando pedra, cordas de arco sendo retesadas e soltas, urros e brados e o sangue respingando. Hochsend iniciou imediatamente um ataque a criatura que estava bem à sua frente, cuidando para que pudesse improvisar uma parede de escudos com Hagen e Mitrin. Teria funcionado muito bem, se ambos não avançassem um para cada lado, em busca do Demônio Antigo mais próximo, quebrando a formação. Yasmin e Sodoma lançaram diferentes feitiços: um jato de água de alta pressão em um dos inimigos e um atordoamento mental em outro. O Demônio que lutava contra Hochsend recuou levemente, trocando o peso do corpo para a perna esquerda, pisando no símbolo gravado no chão da caverna. Com um estrondo, uma COLUNA DE FOGO ergueu-se explosiva, como uma erupção em miniatura. Como que por mágica, TODOS os círculos no chão verteram chamas, e foi apenas por sorte que nenhum dos Myrmidons foi atingido. No entanto, o salão da caverna agora era dividido por pilar de fogo, coluna, pilar de fogo, coluna, pilar de fogo, coluna, pilar de fogo... quatro e três, intercalados, vinte e uma barreiras. As criaturas pareciam imunes ao fogo, renovadas até.

Siltari, voando habilidosamente por entre estes obstáculos, disparava flechas com maestria e olhava de cima a todo o combate. Os nove inimigos avançavam, mas havia uma arcada no final que indicada a saída. Damon fez por bruxaria que uma coluna se derretesse parcialmente, virando lama, e escorresse sobre um dos pilares de fogo. A tática funcionou parcialmente, uma vez que as chamas foram apenas abafadas, e não apagadas. Alexandros correu junto à parede, e evitou que fossem flanqueados por um dos Demônios. Luparus, ao notar o caos que a formação tinha se tornado, jogou uma de suas bombas de fumaça, obscurecendo a visão dos monstros.

Tentavam se virar o melhor que podiam, todos os Myrmidons envolvidos em combate. Os Demônios pareciam lutar com jubilo e prazer pela matança, com um arremedo de sorriso entre as rochas que se assemelhavam a dentes, e buscavam, sem explicação racional, à Hochsend. Um deles girou sua pesada corrente flamejante com tamanha velocidade e ódio, que o jovem não conseguiu se defender... com um estalo alto, seu braço quebrou-se ao meio, o grande escudo anão pendendo ao seu lado, inerte.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

GURPS ÆRTH - Capitulo 5

Após tensos segundos em que os grupos se observam, os Demônios Antigos recuam do parapeito. É óbvio que elas sabem da presença dos Myrmidons, e, fora da visão, se preparam para algo. O grupo prefere não esperar, mesmo tendo perdido completamente o efeito surpresa. Embora alguns queiram voltar à Skyfall e pedir reforços, sabem que a viagem de ida e volta, junto com a preparação de um exército mínimo levaria dias... Assim, acabaram entrando em acordo que o último aviso de que "não havia tempo" de Lorde Octavius deveria ser levado mais à sério.

Novamente, Belly Swan ficou acompanhando a carroça e os cavalos, junto de poucos companheiros, como "Olhos-Frios" Marash-Do e Ronan Brocknock. Já Luparus "Mil Olhos", Hagen, Hochsend von Schultz, Mitrin Drachelager, Alexandros Mograine, Sodoma, Siltari Tauri, Damon Cook e Yasmin prepararam-se e entraram na Torre. Não seria uma missão de salvamento. Desejavam exterminar todos inimigos que encontrassem.

Vasculhando o andar inferior, havia apenas destruição. A criatura encontrada na biblioteca jazia sozinha, um monte de pedras irreconhecíveis. Caminhando para a escada que leva ao segundo andar, Hagen notou que as armaduras anteriormente exibidas estavam todas no chão, espalhadas. Estendeu a mão até uma manopla caída, talvez para verificar se poderia usar a peça... mas no momento em que a pegou, notou duas coisas: a primeira é que a "armadura" era na verdade uma parte oca de uma estátua, feita de um mármore claro e polido de veios verdes e com filigranas de prata, somente semelhante a uma armadura real (embora tivessem partes móveis). A segunda coisa que notou é que todos os pedaços de estatuas começaram a convulsionar em uníssono. Todos se prepararam para a eminência de problemas - parecia que uma força invisível juntava as peças, reconstruindo as estátuas, como se vestindo homens que não estavam lá. Em segundos, remontaram-se. Todos prepararam-se para um possível combate, Mitrin já desferindo alguns golpes contra um peitoral próximo que, mesmo avariado, continuava sendo movido pela força invisível.

As estátuas começaram a andar sozinhas, animadas por forças desconhecidas claramente sobrenaturais. Eram oito; todas portavam algum tipo de arma, feita da mescla de metal e pedra - ora espadas, ora machados; maças e manguais. Todas portavam um escudo de algum tipo, e seus símbolos heráldicos eram diferentes uns dos outros. Havia estrelas e cometas, árvores e martelos e grifos e dragões. Andavam lentamente e ameaçadoramente contra os Myrmidons.

Porém, antes do que parecia ser um combate iminente , enquanto a maioria do grupo rangia os dentes, Hochsend fez como de costume e deu uma chance de rendição aos inimigos, sem se importar se eles eram ou não construtos. "Alto!", ele disse. "Não somos inimigos!".

E, como no mesmo passe de mágica que remontou as estátuas, elas pararam e se viraram para o jovem cavaleiro. Paradas permaneceram. Em um momento de tensão, ele arriscou: "Viemos recuperar a torre de Lorde Octavius. Ajudem-nos ou deixem-nos em paz!".

As estátuas fizeram uma lenta mesura e postaram-se em formação de batalha à frente de Hochsend. Aliviados pelo reforço inesperado, o grupo relaxou e seguiu subindo as escadas. Hochsend ordenou as estátuas em formação ao redor dos Myrmidons. Pelo visto, elas eram algum tipo de proteção do local.

O grupo, agora numeroso, começou a cautelosa subida das escadas. No segundo e terceiro andar, a mesma decoração da destruição, como se um forte vento tivesse varrido os passadiços - armários e gavetas e estantes reviradas, jogadas ao chão, junto de tapetes queimados e cortinas chamuscadas. Tudo que tinha tampa ou coberta ou era algum tipo de invólucro ou vasilha ou recipiente estavam revirados e foram atirados ao chão. Era óbvio que criaturas como as vistas, talvez aquelas mesmo, estiveram vasculhando pelos andares. Exatamente por isso, os Myrmidons subiram lentamente esperando uma armadilha. Mas tudo percorreu bem.

No último andar havia o quarto pessoal de Lorde Octavius de Tsorvo, e a porta para o topo da torre. Estava fechada. Ao passarem para os últimos três degraus antes do aposento, Sodoma, Siltari, Yasmin e Damon Cook - os manipuladores da magia - sentiram uma certa vertigem: como se tivessem ultrapassado alguma barreira invisível e que uma força desconhecida os afetasse, dobrasse e torcesse a realidade. Pelos seus olhares era óbvio que algo estava errado com o Æter do local. Além dos comentários tecidos por eles, os guardiões de mármore começarem a convulsionar levemente e cambalear ao passarem a mesma fronteira imaginária. De soldados altivos, pareciam bêbados armados. Damon Cook notou que a torre era anteriormente um território fértil misticamente - de mana alto - por toda sua extensão. Agora, não mais. Algo estava errado com o mana local, mas ninguém sabia dizer o que e porquê.

Ainda assim, os Myrmidons continuaram. Hochsend reposicionou os guardiões o melhor que pode, e novamente prepararam-se para o combate. Era óbvio que as criaturas estavam além da porta que dava ao topo descoberto da torre. Em formação, abriram a porta.

O topo da torre parte quarto principal, parte varanda; uma sacada aberta, onde Luparus havia visto o Lorde Octavius trabalhando numa mesa repleta de artefatos que ele não sabia o uso. A mesa estava lá, assim como os artefatos, intocados. Avançando lentamente, a vanguarda do grupo passou das portas abertas.

Instantaneamente, algo forçou as portas para dentro, tentando isolar o grupo! Uma das portas se fechou com um estrondo, quando Mograine agachou e rolou para esquivar dela. A outra porta foi interrompida pelo resistente ombro de Hagen. Ao mesmo tempo, os seres de rocha e fogo que tinham sido vistos saíram das paredes paralelas à porta dupla - de DENTRO delas, como se deixassem um lago turvo - irrompendo em chamas, brasas escaldantes e calor, uma explosão em forma humanoide, portando correntes, cimitarras e clavas incandescentes! Eram quatro: dois de cada parede lateral e dois levantando diretamente do solo à frente. Estavam escondidos mesclados às rochas!

Mais uma vez, o combate aconteceu, de maneira rápida e abrupta. Na frente, Hagen e Mitrin avançaram golpeando, de modo liberar a passagem e sair da frente da porta. Alexandros, rolando e levantando-se num só movimento, cruzou golpes com uma outra criatura. Hochsend ia defendendo-se como podia, tentando sem muito sucesso formar uma parede - após a linha de frente improvisada se quebrar, apenas sua incrível habilidade com o grande escudo anão o manteve bloqueando golpes direcionados aos companheiros em ambos os lados. Protegidos pelos guardiões, que formaram um certo perímetro, os outros revezavam ataques com armas de longa distância com magia e feitiços.

Após breves segundos, os seres de rocha e fogo não conseguiram segurar o ímpeto dos Myrmidons. Logo, a frente, um deles ficava imóvel, por causa de um feitiço de controle da mente saído da vontade de Sodoma, a luz saída dos olhos da cabeça encolhida na ponta de seu cajado parecendo confundir o Demônio Antigo. À esquerda, uma chuva de golpes de Hagen e Mitrin transformou em pedaços o inimigo. Á direita, Alexandros soprou em uma das suas lâminas e com o mesmo brilho azul antinatural de seus olhos, ela se tornou gélida, coberta de condensação, gelo e exalando uma névoa cortante. Enquanto o demônio era atingido pelas flechas de Siltari e alguns outros feitiços de Yasmin, ele cravou sua espada onde ficariam as costelas em uma pessoa normal e torceu. Com um grito, a criatura dissolveu-se em escombros.

A terceira criatura teve um fim ainda mais estranho. Damon Cook pareceu encarar o vazio por um momento, como se ouvisse vozes ou contemplasse uma piada própria. Depois, encarou uma das criaturas que golpeava de maneira inclemente o escudo de Hochsend. Uma emanação trêmula e ocre vinda do cozinheiro transformou instantaneamente a criatura em um cadáver humano! O fogo cessou de existir, e as rochas deram lugar a carne morta. Era um homem com as vestes manchadas dos guardas. Tinha cheiro de terra molhada e decadência.

Apenas um restava. Todos saíram para varanda no topo da torre e Sodoma, em aparente controle das ações da criatura, começou a conversar com a mesma. Era uma língua estranha, ininteligível, cheia de sons fricativos. De perto, notava-se que embora todos os Demônios Antigos fossem como fogo preso num corpo rochoso, escapando por eventuais frestas, eram definitivamente diferentes, e não construtos idênticos. Esse tinha um olhar de malícia e divertimento enquanto conversava com o necromante.

Quando Sodoma pareceu satisfeito, mandou a criatura fechar os olhos e não se mover. Depois, apenas meneou para que os guerreiros a destruíssem. Sem reação de defesa, isso foi feito à perfeição.

Sem mais inimigos na torre, os Myrmidons passaram a vasculhar os ambientes. A sacada era um local de observação de corpos celestes utilizado por Lorde Octavius. Era adjacente à seu quarto e tinha uma grande mesa de bronze e latão com artefatos. Melhor examinados pelos estudiosos, os artefatos eram próprios para mensurar as estrelas e seus movimentos: esferas de vidro e lentes de cristal, astrolábios, quadrantes, réguas e esquadros, ampulhetas... a mesa estava também munida de pena, tinta e pergaminhos, preenchidos parcialmente com garranchos que pareciam listar constelações, datas, marés e mudanças climáticas.

No chão de pedra eram visíveis sulcos criados por espaços deliberados dos paralelepípedos. Esses sulcos haviam sido pintados e preenchidos com uma tinta azul brilhante de cheiro acre, formando um símbolo geométrico desconhecido, uma espécie de círculo com partes de um triangulo ou pontas e linhas que se cruzavam. A mesa estava no centro deste símbolo. Ao olhar embaixo dela, notaram que a sua parte de baixo era um espelho. Sodoma, que ao examinar o livro Receitas de Rosenbaum havia se imbuído se um feitiço de memória, afirmou que as bordas desse espelho eram exatamente as mesmas representadas em um desenho de um dos espelhos do livro. Uma cópia fidedigna.

Com muito cuidado, os Myrmidons foram levantando a pesada mesa, de modo a inverter os lados e deixar o espelho para cima. Notaram que os pés da mesa, em latão, eram presos ao chão de pedra e apenas o tampo se movimentava. Ao colocarem o espelho para cima, ele imediatamente refletiu as estrelas do céu - era uma imagem bonita, o espelho impecavelmente limpo, refletindo os corpos celestes em contraste com o negrume do firmamento. E, depois de um breve momento, a imagem começou a tremular, como o reflexo em um lago soprado pelo vento. E sumiu. E, assim de repente, não havia mais um espelho refletindo o céu. Havia uma passagem, e ela levava ao que se assemelhava com um poço de pedra, descendo de maneira impossível para muito além das costas do espelho e do chão da sacada. Preocupados, sem saber o que havia do outro lado, os Myrmidons levantaram o portal e o colocaram na vertical. O poço tornou-se um corredor. Hochsend mandou que os guardiões o cercassem, o que eles fizeram, ainda que aos trancos. Pegaram uma das cortinas do quarto, de veludo rubro e pesado, e cobriram a entrada.

Enquanto alguns vigiavam a nova porta que se abrira, outros vasculhavam os aposentos do falecido Lorde. Um ambiente com as amenidades de um nobre rico, sem ser suntuoso ao extremo. Tudo era de boa qualidade: havia um lavabo, com louças de porcelana decorada com flores vermelhas. Um armário com muitas roupas; Octavius tinha uma predileção por tecidos pesados. Uma grande cama de penas, coberta com peles confortáveis. Damon Cook, acostumado ao trabalho doméstico, notou que um dos tapetes estava estranhamente posicionado ao pé da cama, por onde o Lorde dificilmente caminharia. Levantou-o e achou um pequeno alçapão. Forçando a fechadura, foi revelado um cofre contendo um baú. Tinha um braço de comprimento, por pouco mais de meio braço de altura e largura. Era de carvalho reforçado com ferro negro, e tinha uma boa fechadura.

Ainda assim, a fechadura foi aberta, e todos viram seu conteúdo. Havia os documentos pessoais de Lorde Octavius: seu título de nobreza, as escrituras de suas terras e da torre, junto com alguns mapas das propriedades ao redor, de Tsorvo e uma listagem de arrendatários e moinhos e pontos de interesse. Havia também uma lista dos mantimentos da torre, acompanhada de uma lista de suplementos à comprar. Das dívidas e recebimentos e uma contagem de saldo. Havia também um testamento. Chamou a atenção dos Myrmidons uma particularidade do documento: Lorde Octavius deixava todos os espelhos da torre, sem exceção, à Lorde Qyle de Brynndol. Com a obviedade de um espelho transformando-se num portal, tomaram nota desse fato.

Junto dos documentos, estavam dez pequenos frascos de vidro reforçado com metal que cabiam na palma da mão. Eram cheios de um líquido transparente como água, porém muito mais viscoso e com um cheiro alcalino. Amarrado delicadamente com uma linha fina à seu gargalo e rolha, cada garrafa era acompanhada por uma pequeno envelope de gaze. Dentro, cada um tinha uma pílula da cor do pus, que cheirava a limão.



Também haviam dez pedras de jaspe, vermelhas com veios negros e verdes, esculpidas e do tamanho de ovos. Eram quentes ao toque, da temperatura da pele humana.
Ninguém imaginava o que seriam esses dois itens, ou sua serventia.

A última coisa que o baú continha era um saco de veludo e couro negro que continha F$10 mil, em duzentas moedas de cinquenta Fênix de prata.

Tinham certeza que eram os únicos artefatos dignos de nota. Haviam encontrado tudo. Passaram então a ponderar suas opções. Podiam ir até o outro lado da passagem, e ver o que lá havia. Talvez fosse a fonte de todo o mal que se assomou por Tsorvo. Afinal, não havia tempo de voltar à Skyfall e pedir reforços ou consultar o Lorde Carmell...

... ou será que havia?

Damon Cook disse que poderia fazer a viagem instantaneamente, com um feitiço poderoso. Teria que ir sozinho. Pegou um dos frascos de vidro e uma das pedras de jaspe e disse que voltaria logo. Novamente, pareceu olhar para o vazio. Com um estrondo e um alto barulho de sucção, o "cozinheiro" sumiu numa nuvem de fumaça púrpura.

Todos se entreolharam e resolveram descansar.
Tinham de aguardar.