terça-feira, 19 de julho de 2016

GURPS ÆRTH - Capitulo 10

Estavam cercados.

Os ælfos eram pelo menos duas vintenas - uma patrulha completa. Saíram de trás das árvores, descendo dos galhos mais altos e da cobertura dos arbustos. Todos portavam arcos longos feitos de madeira, tendões e chifres de animais, talhados e esculpidos com a paciência e a maestria que apenas seres de vida longínqua conhecem. Tinham aljavas presas à cintura ou às costas, somando centenas de flechas, todas com ponta de obsidiana, sílex ou osso, apontadas diretamente aos Myrmidons. Suas roupas eram feitas de materiais naturais; couro cru ou fervido, vinhas entrelaçadas, sementes e madeira. Alguns estavam com mantos e capuzes feitos de lã e folhas. Todos tinham a pele branca como a lua cheia, com cabelos da cor da prata polida. Atentos e furtivos, eram semelhantes à grandes felinos, seus olhos amendoados se estreitando, suas longas orelhas pontudas apontando em diferentes direções.




Um deles, com grandes olhos dourados, apontava com sua espada longa feita de marfim. - Larguem suas armas! Vocês invadiram nossa terra.

- Nós fomos trazidos para cá contra nossa vontade. Não queremos problema. - Alexandros Mograine falava baixo, com as mãos afastadas do corpo, demonstrando calma.

- Não importa. Larguem suas armas e rendam-se. Vocês agora são nossos prisioneiros. - O ælfo de olhos dourados os encarou duramente. Outros Myrmidons argumentaram que "eram inocentes", que "nem sabiam onde estavam", mas os ælfos deixavam pouco espaço para explicação. Cercados e acuados, não havia opção a não ser se desarmar...

... menos para Siltari Tauré. Rápida como uma cobra, preparou uma flecha em seu arco, mirando um dos ælfos que os cercavam. Ela flutuava do chão, tendo lançado um feitiço para voar e examinar melhor a floresta onde estavam. Os sentinelas haviam chegado no instante seguinte. Talvez o feitiço servisse para outra coisa agora. - Não iremos com vocês. Não somos prisioneiros. - Ela levitou mais um metro, fixa no ar como um beija-flor. Neste momento, pelo menos dois ælfos fizeram o mesmo, suportados por um tremular celeste. Encararam Siltari por cima da cabeça dos demais, suas flechas retesadas e arcos apontados falavam por si.

- Não tenho alternativa a matá-los por resistência. Não desejo isso, mas darei o que merecem. Larguem suas armas! - seus olhos dourados queimavam de autoridade, os nós dos dedos brancos como a neve tornados rosa ao apertar o cabo de couro da espada de marfim. - Não comece algo que irá lhe trazer arrependimento. - Alguns Myrmidons já estavam se deitando no chão. Damon Cook, obedecendo os sentinelas, cruzou os dedos atrás da cabeça. - Não faça isso, Siltari. Estamos em desvantagem... - o cozinheiro parecia ter, momentaneamente, encontrado a sanidade.

Mas a ælfa parecia estar decidida a não ser posta em ferros. - Não estou começando algo. Estou terminando! - e voou como um pássaro para trás.

No mesmo instante, os dois ælfos a seguiram, também alçando voo. Era uma perseguição. Todos os sentinelas que estavam no chão firmaram-se contra seus alvos, que estavam praticamente rendidos. Sodoma aproveitou o momento da mais leve distração, e tornou-se invisível em uma nuvem de fumaça verde. Rapidamente, enquanto escondido pela magia, conjurou também o poder de voar, e subiu aos ares como uma águia. Esperou que todos também aproveitassem o momento, mas os outros apenas se ajoelharam ou deitaram no chão. Dois ælfos, depois de alguns segundos de surpresa, pareceram ter os olhos envoltos num lampejo de luz laranja, e seguiram Sodoma com a mira dos arcos. Eles claramente o enxergavam, através da magia da floresta.

Siltari é uma exímia arqueira. Mesmo com o vento nos cabelos e em movimento, sua mira manteve-se firme. Sua primeira flecha teve como destino o coração de um dos ælfos que a seguia. A flecha seguiu reta e veloz, mas o sentinela não se defendeu... nem vacilou. Ao invés da flecha atingir seu alvo, algo a dobrou a centímetros do inimigo, uma força invisível a torceu impossivelmente, e o projétil voltou, com a mesma força e rapidez de antes, diretamente ao coração de Siltari! Ao mesmo tempo, ambos sentinelas dispararam suas flechas. Ela rodopiou no ar, assustada, e não foi atingida por pouco. Uma flecha passou a um dedo de sua orelha direita, e duas erraram seu peito por no máximo um palmo.

No solo, os dois arqueiros que seguiam Sodoma com os olhos atiraram suas flechas. Invisível e voando, Sodoma transformou seu braço duro como ferro, um feitiço simples de proteção, e protegeu-se com ele enquanto mergulhava. Uma flecha passou meio metro acima de sua cabeça, e a outra quebrou-se contra seu antebraço, porém, sem causar ferimentos.

Isso era um problema. Siltari, ao ver que suas flechas eram rebatidas magicamente contra si, tentou escapar usando da velocidade. Logo viu a futilidade, uma vez que os ælfos voavam tão rápido quanto ela, já preparando novas flechas. Sem opções, olhou os amigos sendo amarrados e desarmados pelos outros, liderados pelo ælfo de olhos dourados. - Eu me rendo. Parem de atirar! - ela viu-se forçada a dizer, enquanto diminuía a velocidade e levantava o arco acima da cabeça. Os sentinelas a rodearam, flechas apontadas, e a escoltaram de volta à clareira. Eram muito controlados ou seguiam ordens rígidas; seus olhares mostravam o desejo de fazer de Siltari um porco-espinho.

Sodoma, escondido da vista da maioria, voou para além do alcance dos arcos, quando percebeu que era o único resistindo à prisão. O sentinela líder gritou que se rendesse, parecendo enxergar onde ele estava. Sodoma disse que não se renderia, de quase uma centena de metros de distância. "Renda-se, ou seus amigos vão ser mortos", seguiu o ælfo. Alguns sentinelas colocaram facas de osso sobre pescoços dos capturados.

"Não, você não vai matá-los." O necromante acreditava ter percebido que eles queriam capturar os Myrmidons vivos. Como um pássaro, mirou o céu azul e partiu. Ainda assim, notou que olhos dourados o seguiam até perdê-lo de vista. Nenhum de seus companheiros fora morto. Seu blefe dera certo.

O líder deu mais ordens assim que Siltari pousou; todos tiveram os braços e pernas amarrados, e também amarrados uns aos outros, com resistentes cordas de cânhamo que arranhavam a pele. Os ælfos os provocavam enquanto iam fazendo com que andassem. Diziam que era bom que não tinham resistido. Um deles falou rindo que eles quase ficaram com mais furos que uma colmeia.

Andaram no que parecia ser uma trilha de caçadores, pela floresta, por algum tempo. Quase não viam o céu, o sol entrando apenas nos pequenos espaços das folhas do cume das árvores, iluminando-os suavemente. Após poucas léguas percorridas em silêncio, chegaram em uma cidade, mas era diferente do que todos, à exceção de Siltari, haviam visto. Era como se ela tivesse sido cultivada, ao invés de construída, totalmente imersa na floresta, parte integrante da natureza. Torres feitas de árvores ocas, mas ainda vivas e verdejantes. Cabanas e castros construídos dentro de carvalhos, pontes feitas de galhos entrelaçados, a cobertura das folhas servindo como telhados. Nenhuma das lamparinas e lampiões à vista continham fogo: eram preenchidos de uma luminescência fria como a dos vaga-lumes. Pouco a pouco, entraram de fato na cidadela e ficaram à vista da população. Assim como os sentinelas que os capturaram, todos ælfos vestiam-se com os materiais da floresta: usavam capas de penas, chapéus de palha, gibões de folhas trançadas com botões de madeira e adornos de sementes e pedras. Todos brancos como a neve, com o mais leve toque do verde em sua pele e cabelos, como uma tela em branco preenchendo-se lentamente de natureza.


Foram guiados por uma verdadeira cidade feita no meio da mata. As trilhas se alargaram do tamanho de ruas, e quase todas as árvores eram feitas moradia e edifícios. Pareciam ter engolido prédios, lojas, padarias, cervejarias... um ælfo carregando um cesto de vime cheio de frutas parou para que passassem. Os Myrmidons deveriam ter entrado por uma espécie de porta lateral, ou a cidade não tinha um centro. Logo chegaram a uma árvore gigantesca, mais de oitenta metros de altura, e a base de seu tronco deveria ter pelo menos trinta. Possuía longos galhos que se assomavam pela floresta, as infinitas folhas verdes que brotavam se costurando, vivas, em todos os galhos ao redor. Sua sombra era enorme. Os prisioneiros foram levados para uma das aberturas no castelo-árvore, e entraram por ela. Dentro, tudo era feito de madeira e rochas, com esteiras de palha no chão e as luzes de fogo-fátuo de várias cores. Viram escadas enormes, feitas de galhos e raízes, que seguiam para os inúmeros andares superiores. Mas o caminho dos sentinelas era outro, e os Myrmidons viram-se levados para um buraco no chão.



Desceram um túnel que parecia feito por um tatu gigante. Um buraco esférico de terra dura levava para baixo numa espiral íngreme. Deram numa antessala, onde foram despidos de armas e armaduras, e um a um foram deixados apenas com uma muda de roupas. Tiraram inclusive todos os itens que Primak havia lhes fornecido, à exceção do anel de Luparus, que passou despercebido por todos. Os sentinelas colocaram braceletes feitos de carvalho nos Myrmidons, uma forma estranha de grilhões sem correntes. Eram pesados, com arabescos inteligíveis pintados de dourado.

Damon Cook tentou influenciar a mente de um dos aelfos com um encanto, enquanto estava sendo levado. No mesmo momento, os braceletes de carvalho faiscaram com um barulho altíssimo, e os guardas o ameaçaram com facas e lanças instantaneamente, conscientes da tentativa. Assustado, ele se rendeu novamente. Então, um a um foram levados a sala adjacente, alguns corredores à esquerda, e foram colocados em celas.

Todas as celas eram individuais e feitas de terra dura, compactada como uma sepultura em tamanho gigante. Ainda assim, ao menos eram confortáveis. Embora no subterrâneo e sem janelas, algo fazia com que o ar fosse fresco, sem o cheiro de mofo e a umidade da maioria das masmorras. Também havia uma tênue luz mágica surgida de lugar nenhum, um eterno crepúsculo que afastava as trevas. Havia um balde para dejetos, inicialmente limpo, e um amontoado de palha nova e cheirosa fazendo as vezes de cama. Ao invés de barras de ferro, havia uma porta de madeira sólida e grossa, com rebites esculpidos.

Siltari começou a reclamar e esmurrar a porta logo nos primeiros minutos, sem controlar sua claustrofobia. Novamente, em uma demonstração de clemência, a porta de sua cela foi aberta repentinamente, e um dos ælfos apareceu, acompanhado por três guardas. Ele fez alguns gestos rápidos e as paredes da cela de Siltari sumiram, dando lugar a uma linda floresta florida no eterno entardecer. Imediatamente fechando a porta, partiram tão rápido quanto chegaram. Siltari logo descobriu que se tratava apenas de uma ilusão; conseguia ainda tatear as paredes e não conseguia passar desse limite. No entanto, a ilusão era real o suficiente para que a arqueira se aquietasse, e não se sentisse mais enterrada viva - sua prisão era uma pequena clareira, agora. Ela sentia até mesmo uma leve brisa.

Enquanto isso, Sodoma permanecia livre e escondido. Voando por cima do topo das árvores, notou que estava numa floresta imensa. Mesmo bem no alto, ela ia por boa parte de onde sua vista alcançava. Uma cadeia de montanhas ficava no horizonte, a dias de voo. Pousando depois de algum tempo, Sodoma parou para pensar. Com a ajuda de alguns feitiços localizadores, ele imaginou que estava em algum lugar da Floresta de Eldenburn, lar ancestral da Casa de Eldenurin, e também território dos ælfos há milênios. A cadeia montanhosa a alguns dias de viagem então só poderia ser Ærieheim, território anão regido pela Casa Anvilmarr, de um palácio subterrâneo. Ærieheim, pelo que sabia, é quase que coberta em sua totalidade pelas Montanhas Prateadas e suas cadeias de desdobramento – são 150 quilômetros de cânion, terrenos montanhosos, colinas e ravinas - e o pior, caso estivesse certo, isso significava que ele estava a pelo menos uma quinzena de caminhada de Norlland e Skyfall.

Traçou um pequeno plano de ação: procurou um pássaro por um curto tempo, encontrando uma coruja. Disparou um feixe de luz mágica no animal, prontamente o matando. Depois, ressuscitou a coruja com um feitiço da morte, transformando-a um morto-vivo. Escreveu uma mensagem à Lorde Carmell, dizendo onde estava em poucas palavras, e que tinham sido transportados para lá. Ordenou que o pássaro corrompido fosse à oeste, para o maior castelo que encontrasse, e deixasse que retirassem a mensagem amarrada em sua pata - e assim que isso fosse feito, que voltasse a esta floresta. Sem emitir um som, ela partiu. Sem ter como encarar tal viagem sozinho, preferiu se entregar junto aos amigos. Partiu voando na direção onde eles foram levados e logo avistou a cidade. Pousou novamente, e sorriu ao mostrar-se aos guardas. Foi levado pelo mesmo caminho e para as mesmas celas que os companheiros, cercado por mais guardas tensos.

Passadas algumas horas, os Myrmidons foram retirados das celas, ainda desarmados, e foram levados para cima e para fora do calabouço. Atravessaram por algumas portas de carvalho pesado, todas com guardas portando lanças pesadas, arcos curtos e aljavas carregadas de flechas, e entraram num grande salão, aparentemente no centro do castelo-árvore. Era um espaço amplo - talvez coubessem duas centenas de pessoas lá dentro. Uma grande mesa de pedra e madeira, com espaço para pelo menos vinte pessoas repousava no meio dela, onde os Myrmidons foram postos sentados, um a um. Os guardas ficaram às suas costas, vigiando-os. À frente de todos, num local mais alto, em um uma réplica menor da mesma mesa, quatro ælfos, vestidos claramente como nobres, os estudavam. Eram três machos e uma fêmea. Um deles se sentava mais alto dos demais, em um trono de madeira esculpida, lindamente detalhado - tinha o formato de uma árvore, e pequenas luzes frias faziam as vezes de frutos, pequenas estrelas brilhantes. Faces de animais diversos eram esculpidas em seu espaldar.

Um dos ælfos sentados na parte mais baixa perguntou o que faziam ali, acusando-os de intrusos. Ele era branco, como os demais, com cabelos da cor de um osso velho. Seu vestido longo parecia feito de seda clara. Falava muito bem o tradespyk. Os Myrmidons, calados inicialmente, começaram a responder à medida em que os senhores foram aumentando o tom de suas perguntas, mostrando descontentamento. Apenas Sodoma mostrou-se claramente contra dar algum tipo de resposta.

Mesmo assim, os Myrmidons contaram o que houve, sobre o ataque à vila de Tsorvo, e o sobre o espelho que encontraram na torre de Lorde Octavius, depois de enfrentarem alguns "demônios". Um completava a história do outro, automaticamente. Falaram sobre o caminho que se abriu no mundo através do espelho, e o que lá encontraram, na busca por Primak. Os ælfos apenas se olhavam, frequentemente parecendo conversar apenas com os olhos. Poucas interrupções aconteceram. Finalmente os Myrmidons pediram que eles compartilhassem o que sabiam sobre Primak, e reiteraram que não eram invasores. Os ælfos mesmo deram poucas informações - responderam não acreditar na existência de Primak, que ele era um "demônio lendário", e que desconheciam tais espelhos. "Vocês estão mentindo ou loucos", disse o ælfo sentado no trono. Disse que estavam invadindo as terras ancestrais, e que agora estavam no domínio da Floresta de Eldenurim - Sodoma havia adivinhado corretamente sua localização, parecia.

Os ælfos sentados no lugar mais baixo, numa falha de cortesia ou descaso, não deram seus nomes. Eram dois machos muito parecidos, e uma fêmea muito bela, quase diáfana. O ælfo sentado ao trono apresentou-se como Lafariné Irullan, intendente do Lorde Regente de Eldenburn, Tirael Eldenurin. Lorde Tirael não estava presente, e ele falava pelo povo ælfico nesse momento. Os Myrmidons sabem, assim como quase todo o Reino, que ele detém um poder considerável, sendo o tio da Magna Regina Illyria Irullan, e parente do Magnus Rex Harald IV Hyborne. Ser "apenas um intendente" não é relevante neste caso. Com um aceno, ele disse que iria deliberar sobre o caso, e enviou os Myrmidons de volta às celas.



***

Uma portinhola abria-se três vezes ao dia, para que a comida fosse servida e o balde com os dejetos fosse retirado.

Era difícil contar quanto tempo ficaram encarcerados, pois não viam a passagem do dia e da noite, e não tinham nenhum contato com o lado de fora. Era entediante e os minutos se esticavam em horas... apenas as refeições serviram como um relógio improvisado. Eram tigelas feitas de argila ou barro cozido, normalmente com frutas e vegetais, acompanhado de mel, cereais, pão e milho quente. As vezes era algum tipo de sopa, servida com queijo. Água, sumo de frutas ou leite de algum animal desconhecido para beber.

Depois do que pareceram duas semanas, ou perto disso, houve uma mudança na rotina. Um tempo após a entrega da terceira refeição do dia, as portas foram abertas, uma a uma. Guardas foram tirando os presos de dentro das celas, em silêncio, pedindo para que fossem seguidos com cautela. Era um comportamento estranho, os guardas sussurrando e pedindo, ao invés de ordenar. Embora isso deixasse os Myrmidons desconfiados, suas opções eram escassas: seguirem os guardas pacificamente; tentar uma resistência enquanto em menor número e desarmados; ou continuarem presos. A maioria foi simplesmente para saber mais da situação estranha. Damon Cook, aterrorizado pelas vozes de sua mente, preferiu a última opção, quase sendo trancado novamente. Elas diziam que os ælfos não eram de confiança e seriam sua ruína.

Até que Hagen apareceu, guiado pelos guardas como último recurso. Ver um rosto amigo acalmou o cozinheiro, e o servo de Tyr levou-o consigo, prometendo segurança nessa situação insólita. "Tyr escreve certo por linhas tortas, Damon. Não precisamos ter medo", ele disse.

Foram guiados até a antessala que haviam estado dias antes. Guardas ainda os cercavam, mas não ameaçadoramente. Seus pertences foram sendo devolvidos, um a um, enquanto uma ælfa observava. Além de ser a única fêmea entre os guardas, tinha o apenas os olhos púrpuras aparentes - ela usava um manto sobre a cabeça e um tecido cobria a parte de baixo de seu rosto.

"Sigam-me. Vou libertá-los essa noite", ela disse, com uma voz de cristal.  "Não temos autorização para isso, e será escondido... portanto, cuidado". Seu tradespyk tinha um leve sotaque cantado.

Os guardas, após reequipar os Myrmidons, pegaram os mesmos grilhões feitos de carvalho e colocaram nos presos. Mesmo com alguma reclamação, a ælfa disse que "era necessário" e eles acabaram aceitando. Esses conspiradores pegaram algo parecido com tochas - mas ao invés de um pano embebido em óleo, eram pequenas garrafas de âmbar e seiva solidificada com o que pareciam dezenas de vaga-lumes presos dentro. Seguiram subindo pelas escadas de terra. Acabaram saindo do buraco, na periferia do castelo-árvore.

Os minutos foram se arrastando, sem que ninguém trocasse uma palavra além de "venham" e "sigam-nos". Os guardas iam traçando um caminho escondido nas sombras, e os Myrmidons foram seguindo em total silêncio. Saíram do castelo-árvore e seguiram por caminhos entre a floresta. A ælfa ia na vanguarda, ajudando a guiá-los pela floresta, à pé.

Ao entrar na floresta fechada, ela começou a traçar um caminho estranho: dava meia voltas, circundava árvores antes de ir, passava por raízes e voltava. Quando perguntada o que fazia, disse percorrer uma rota magicamente escondida, incapaz de ser guardada na memória por desconhecidos. Pediu para ser seguida de maneira exata.

E eles foram, passando por caminhos tortuosos, dando voltas e indo e voltando de maneira que os faziam ter impressão de ser alvo de uma brincadeira de criança. Depois de um tempo, no entanto, o caminho tornou-se direto, e eles passaram a se afastar do castelo a passos largos. Acabaram por chegar em um pequeno espaço entre as árvores, algo parecido com o inicio de uma caverna minúscula, feita de juncos e musgo.

Todos pararam na entrada, e os guardas, comandados por um aceno da ælfa de olhos púrpura, libertaram os Myrmidons dos grilhões de carvalho. No mesmo instante, Sodoma lançou um feitiço de memória, para não esquecer nunca mais onde estava. A ælfa apenas o observou, no que pareceu um olhar de censura. Mesmo assim, ela tirou o véu, e se mostrou. Era a fêmea que estava presente na sala de conferências, quando lorde Lafariné os prendeu. Ela disse que era contra sua prisão, e que todos na sala sabiam sobre Primak e os espelhos. Mentiram deliberadamente para os Myrmidons, mesmo sabendo de sua inocência. O que lorde Lafariné planejava, ela não sabia... mas era contra seu rumo de ação, por isso engendrou a fuga na calada da noite. Disse para seguirem pelo túnel, e estariam livres.

Seu nome era Landariná.



Agradecendo, ainda que desconfiados, os Myrmidons partiram.

Andaram pelo túnel escuro por horas, no subterrâneo pouco profundo da floresta. Era um túnel úmido, cheio de minhocas e insetos. Finalmente chegaram a uma abertura e viram o céu. O amanhecer não demoraria. Ao sair, a passagem fechou-se sozinha, como uma boca desdentada, e a saída da caverna transformou-se num morro baixo. Após uma breve conferência dos acontecidos e dos rumos à seguir decidiram voltar para Norlland. Seria uma viagem longa. Sodoma fez um feitiço para conjurar mortos vivos presentes a uma boa distância de si, e com isso, sua coruja o encontrou. Estava sem a mensagem amarrada. Talvez tivesse conseguido entregá-la antes de retornar.

Se apressaram madrugada adentro, para que não conseguissem ser alcançados ao terem sua fuga descoberta. Pelo visto funcionou. Iam para noroeste: os dias mesclaram-se na mesma rotina: paravam somente para descansar e comer, os alimentos sendo magicamente conjurados do ar por Damon Cook Bebiam dos rios.

Com quase duas semanas de viagem, chegaram a primeira das vilas do Norte, um pequeno lugarejo chamado Aston. Preferiram circundá-la durante a noite para não chamar atenção. Mais dois dias de viagem, e encontram uma vila ainda maior, agora em território oficialmente "seu" - era uma vila de lenhadores e mineradores, de tamanho quase notável. Escolheram entrar na vila e tentar mandar um pombo correio à Skyfall.

Ao se aproximar, era óbvio que havia algo errado. Os portões da vila estavam fechados durante o dia. Sua paliçada erguida tinha sinais de desgaste e danos. Algumas marcas de sangue fresco próximo ao portão eram visíveis. Sodoma mandou a coruja sobrevoar a vila, e piar caso visse humanos. Ela fez duas voltas em silêncio e piou quando passou por uma grande construção, pousando em seu telhado - talvez o solar da cidade? De resto, parecia vazia.

Embora alguns quisessem também circundar essa vila, outros lembraram que um dos deveres dos Myrmidons de Skyfall era "proteger o Norte", e isso claramente se encaixava, Alexandros concentrou-se no mundo dos espíritos, e viu espectros de guardas mortos violentamente, aparecendo ao seu redor. Um deles, com a cabeça amassada pelo que parecia um golpe de maça, apontava uma uma invasão na vila, chamada de Colkirk. Apenas o Mograine podia ouvir seus terríveis lamentos. Compartilhou isso aos companheiros.

Hagen, sutil, deu com o ombro massivo no portão da vila, e eles abriram. Estavam destrancados. Os Myrmidons entraram em direção ao prédio que a coruja zumbi havia circundado. Ao andarem algumas dezenas de metros pela entrada principal, os portões fecharam atrás deles. Dois uruks de aparência primitiva e grosseira estavam atrás das paliçadas, fechando o caminho. Outros oito urkus saíram das vielas e das construções simples. Todos usavam couro e peles, portavam armas rústicas e pesadas, algumas lâminas de ferro de aparência maligna. Cercavam os Myrmidons esperando o combate, com olhares tensos.



Por um momento se observaram. Ninguém trocou uma palavra. Um dos uruks então correu gritando em direção à Hagen e a loucura começou. Todos moveram-se ao mesmo tempo - Hagen apanhou o uruk com sua grande espada, a lâmina cortando a clava improvisada do mesmo, suas roupas, carne e ossos. Sodoma ficou invisível, como de costume, e um dos inimigos parou confuso, procurando-o. Siltari partiu voando e atirou com seu arco: o primeiro tiro atingiu o coração de um dos inimigos. Ele caiu no chão como se um saco de aveia. Dois uruks avançaram sobre Alexandros, espetando com suas lanças; o Mograine desviando os golpes com suas cimitarras e contra-atacando. Outros dois uruks gritaram algo incompreensível ao atacarem Mitrin. O anão usou seu escudo como uma parede bloqueando os golpes e devolvendo na mesma moeda com seu pesado martelo de guerra.

Alexandros lançou um feitiço de congelamento em um dos inimigos, mas, advindo das terras brancas do Norte, o uruk resistiu. Passando pela geada conjurada, deu uma estocada na direção o rosto do humano. Alexandros deu um passo para trás e desviou, dando abertura ao segundo uruk, que, alguns metros atrás, arremessou sua lança contra seu flanco. A ponta fincou-se fundo no caçador de demônios, e o sangue verteu farto. Hagen correu em sua direção golpeando por onde passava, instintivamente cercando os inimigos acompanhado de Mitrin. A seu lado, o peito de um uruk simplesmente explodiu, seu coração pulando no ar por um momento, e então rolando na terra. O inimigo estava morto antes mesmo de cair no chão. Se Hagen ou Mitrin tivessem a habilidade de ver o invisível, talvez tivessem notado que isso era obra de Sodoma, que manobrou pelas costas do uruk e utilizou um feitiço de evisceração. Siltari atingiu, com suas flechas sempre certeiras, os uruks que se afastavam. Cravou um deles contra o portão de entrada, como um besouro de um colecionador.

Damon Cook, notando a movimentação, lançou alguns feitiços em sequencia - primeiro, estendeu as mãos e conjurou um encantamento de cura sobre Alexandros. Suas feridas fecharam-se instantaneamente, sua consciência voltando num estalo. Quando o combate recomeçou, ele lançou um feitiço aterrorizante sobre os urkus que enfrentavam o caçador de demônios. Desesperados pela imagem mística dos seus piores pesadelos tornados realidade, os inimigos puderam apenas gritar. Com um giro rápido em sua cimitarra, o Mograine abriu a barriga do primeiro uruk, e lançou-se sobre o segundo, segurando sua garganta.

O combate havia acabado. Os Myrmidons se juntavam, todos uruks mortos ou morrendo, à exceção do que Alexandros segurava - ele tencionava interrogá-lo.

No entanto, antes de fazer a primeira pergunta, eles ouviram o som de cavalaria. Dezenas de cascos de cavalos na terra batida. Virando-se lentamente, eles prepararam-se para mais um combate, Talvez fossem mais alguns uruks. Eles poderiam dar conta de mais alguns.

Só que eram muitos. Virando uma das ruas, seguindo pela avenida principal, eles apareceram. Era toda uma tribo nômade, quase cem uruks à cavalo. Outros acompanhando correndo. Todos armados. Suas bandeiras desconhecidas ao vento. Era um exército.