sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

GURPS ÆRTH - Capitulo 9

Quando recuperaram a visão, todos notaram que estavam num aposento muito menor do que o esperado. Embora o último deles não tivesse dado mais do que dez passos além da porta, o lugar que surgiu não parecia suportar todas aquelas trevas infinitas, senão por magia.

Estavam no que aparentava ser um estúdio de um nobre, fartamente decorado, ainda que com poucos móveis. As paredes eram de rocha sólida, como as do interior de um castelo. Não haviam janelas visíveis, e havia apenas uma porta, à frente e à direita deles. A porta por onde entraram parecia nunca ter existido. Ricos tapetes estavam espalhados no chão, e incensos adocicavam o ar, que estranhamente, não parecia parado. Uma grande lareira queimava à esquerda, com um fogo reconfortante. Uma cama com dossel de veludo estava arrumada, com o que parecia um confortável colchão de penas e cobertas de lã e pele. Ao lado, armários e estantes sugeriam um guarda-roupa extenso e opulento, assim como abundantes materiais de estudo, diários e livros. Tochas queimavam das arandelas de ferro, e velas estavam espalhadas em alguns suportes, o que - juntamente da luz alquímica levitada por Sodoma - fazia com que o quarto estivesse bem iluminado. Nada parecia escondido.

Mas não estavam sozinhos. Encostado em uma mesa, ao lado de uma grande arca de carvalho e ferro, um homem os encarava. Ele era muito bonito, alto como uma lança e cheio de músculos, claramente visíveis sobre suas vestes ricas. Seu gibão de couro macio e flexível tinha tachos de ouro, e sua camisa de seda e cetim parecia nova, com botões de pérola. Seus longos cabelos loiros e lisos cascateavam até os ombros, e seu rosto barbeado tinha um queixo poderoso. Seus olhos eram de um azul elétrico, da cor dos relâmpagos de uma tarde de tempestade - e mostravam seriedade além dos anos que ele aparentava.

- Fiquem calmos, amigos. Não há nada a temer aqui, e eu estou claramente desarmado - ele disse, observando os Myrmidons ainda em formação de combate, espadas em punho e olhares atentos.

 - Então diga quem é e onde estamos, "amigo" - retorquiu Sodoma, enquanto Hagen, Damon Cook, Mitrin Drachenlagen, Alexandros Mograine e Siltari Taure desfaziam a fila reta que estavam, espalhando-se atentamente pelo aposento, ainda desconfiados.

- Estão em minha prisão, embora ela seja mais confortável que se possa imaginar. Eu sou Primak. Sou eu quem buscam.

Prisão? Caso fosse isso verdade, realmente a prisão dos nobres não era nada parecida com a masmorra de Skyfall, onde os traidores, violadores e ladrões eram trancados e esquecidos em meio à trevas, bolor úmido e ratos famintos.

Os Myrmidons perguntaram a ele sobre o que fazia aqui, e se conhecia o labirinto cheio de provações que acabaram de passar. E se havia um propósito em tudo isso. Seu bastão lampejando, Sodoma lançou um feitiço discreto, que lhe permitiria saber se alguém mentisse. Primak respondeu a tudo, calmamente, quase que casualmente:

- Tenho confortos, mas sim, estou bem preso - levantou os braços mostrando dois braceletes, de um aço brilhante e lustroso, fechados firmemente em torno de seus pulsos. - A não ser que vocês achem que isso são as abotoaduras de um nobre - disse, com um rápido sorriso. As correntes que pendiam daí, uma coisa estranha, não estavam ligadas à lugar algum. Simplesmente iam dos braceletes a lugar algum, desvanecendo-se como um espectro antes de alcançarem um metro. Grilhões fantasmas. - Um grupo de elfos, anões e outros me prenderam aqui, para que eu não pudesse ajudar Hyborne.

Contando sua história, sendo interrompido apenas pelos questionamentos dos Myrmidons, que pouco a pouco iam deixando sua atitude beligerante de lado, Primak contou algo parcamente crível. Se dizia um arquimago poderosíssimo, superior ao Magnus Rex. E por Magnus Rex, ele parecia referir-se ao primeiro Harald Hyborne, nos tempos da junção dos reinos, acontecimentos de quinhentos anos atrás. Disse ter sido preso por ajudar seu povo - os humanos - e que as outras raças de todos os reinos o prenderam tanto por não conseguirem o matar, como para evitar que os humanos se espalhassem como uma erva daninha. Em um grande ritual místico espalharam sua essência por planos de existência distintos, cada um ligado a um objeto terreno. Os espelhos. O caminho não era totalmente irreversível, talvez para que o libertassem em algum tempo de necessidade, ele especulou, mas eram povoados de logros, criaturas e desafios místicos; uma armadilha da morte. O que provavelmente era algo sábio a se fazer, uma vez que ele livre, faria com que os humanos unificassem o reino, subjugando todos os inimigos, mortos ou vivos.

"Vocês tem a chance de me libertar, cruzando estes desafios", ele disse. Em nenhuma hora Sodoma sentiu algo que não a verdade, embora mantivesse esse conhecimento para si.

- E porque deveríamos? Algumas escrituras que encontramos o chamam de demônio. Por que correríamos esse risco? - Mitrin tinha seu grande machado apoiado ao chão, pela parte romba que se assemelhava a um martelo, e tinha as pernas levemente afastadas. Hagen pensava em Tyr e orava em silêncio. Me dê a sabedoria, ó Tyr, para discernir meus inimigos e os ímpios. Retire o véu da mentira dos meus olhos, e mostre-me os maus. Sentindo o sopro de seu deus mesmo naquele lugar anormal, seus cabelos da nuca arrepiaram-se. Era um sinal claro que Tyr considerava Primak indigno e mau.

Ao mesmo tempo, Alexandros ia caminhando levemente pela parede, flanqueando Primak o mais que podia, como um gato das montanhas espreitando sua presa. Sua deusa da morte, Nilfengardh, também sussurrava com o Exterminador; há muito ele havia aprendido a diferenciar as enganações dos demônios sobre a Ærth. Seus olhos, duas estrelas azuis e frias, brilharam um pouco mais enquanto ele perscrutava, e houve a repentina certeza... Primak não era um demônio, mas também não era um mortal. Primak era imaterial.

 - Você diz que podemos te soltar, e que você poderia ajudar a unificar os reinos, ainda que em detrimento das outras raças - disse Sodoma, lambendo os lábios em uma negociação - mas não temos motivos para isso. Talvez seja um demônio, talvez não. Mas se está aqui preso, somos a sua única chance. Se você mentir ou nos enganar, nunca voltaremos, e você permanecerá preso. O que pode fazer para... se ajudar? - O necromante lutou para segurar um sorriso.

- Posso dar-lhes algumas coisas, caso prometam voltar. Primak apontou a pesada arca de carvalho à seus pés.

- Embora se diga um arquimago, você perdeu todo o poder, inclusive o de barganha. Sem promessas. Veremos o que você pode fazer, e resolveremos se vamos ou não tentar lhe libertar. O que você tem a perder? Somos sua melhor chance. Afinal, você diz estar preso aqui a quase quinhentos anos... e somos obviamente os primeiros que passaram. Podemos muito bem ser os últimos, e você que fique aqui pela eternidade. - Sodoma tinha um tom quase cruel, sinalizando inflexibilidade. - Você ajuda nossa busca como puder, e nós pesaremos se podemos fazer o mesmo.

Após um breve momento de reflexão, Primak assentiu silenciosamente, aparentemente julgando-se sem opções, e abriu a arca. De dentro dela, tirou alguns itens. A Sodoma, Damon Cook e a Luparus, deu um anel para cada. Deu o que aparentava ser um botão de espada para Hagen e Mitrin. Uma pulseira para Hochsend. Um arco para Siltari. E, finalmente, uma moeda de prata a Alexandros.

Dividido pela dúvida, o Exterminador Mograine decidiu não aceitar. - Não aceito presentes de demônios. Eu os mato e os devolvo para as trevas de onde nunca deveriam ter saído - silvou. Primak, sem se mostrar ofendido, guardou a moeda de prata em um bolso. - Eu não sou um demônio, embora meus inimigos assim me chamem. E apenas deles mereço a alcunha. Você, mais do que ninguém, deveria saber a diferença - disse. Para Alexandros, pouco importava.

- A porta da esquerda leva vocês para fora de meus aposentos, e para fora do espelho. Fora dessa... realidade. Eu não posso cruzá-la, mas vocês são livres para ir. Eu fiz o meu melhor, respondi suas questões com a verdade e dei-lhes itens para ajudar em minha soltura. Estou, novamente, de mãos atadas à meu destino, e só posso esperar que um dia voltem. E me libertem. - Primak era educado como um lorde, e mesmo dizendo-se sem escolhas, respondia dignamente.

- Então é bom torcer para que nos encontremos novamente - despediu-se Mitrin, à caminho da porta.
- Ou não - o tom de Alexandros era levemente ameaçador.

E os Myrmidons passaram pela porta da esquerda, que abria-se também para as trevas inescrutáveis. Como anteriormente, seguiram a luz da poção alquímica. Novamente, quando a porta saiu do alcance do último que passou, ela fechou-se com um estrondo. Julgavam-se preparados para o clarão cegante e o torcer do mundo, mas só Sodoma permaneceu de pé quando materializaram-se ou foram teleportados para uma floresta. O resto estava no chão, a passagem entre realidades por demais desorientante.

Estavam em algum lugar desconhecido. Uma clareira no meio de uma grande floresta fechada, já de manhã. Entraram pelo espelho em Tsorvo quando ainda era noite, e não tinham muita noção de quanto tempo havia se passado, mas claramente havia amanhecido. Lentamente foram se recompondo, examinando os arredores. Estavam em uma floresta imensa onde viam-se carvalhos e urzes negras, bem como árvores sentinelas até onde a vista alcançava. Siltari reconheceu pinheiros marciais, espinheiros, faias, freixos, castanheiras e abetos. A clareira que apareceram era, estranhamente, feita de grama baixa, e formava um círculo quase perfeito. Um lugar para acampamentos, talvez?

Quando começavam a discutir o que fazer, uma flecha se cravou no meio deles. Era feita de madeira escura, com penas cinza de ganso, e todo seu primeiro terço cravou-se na terra - o arqueiro era forte. Um tiro de aviso.

Lentamente, dezenas de elfos armados saíram de trás das árvores, cercando os Myrmidons. Eram sentinelas. Ælfos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário